As reproduções de esculturas famosas por grupos de artistas maquilhados e iluminados a rigor, que, durante alguns segundos se mantinham em pose, constituíam um tipo de espectáculo a que os franceses chamavam tableaux vivants. Vindos do século dezanove – em que se representavam também cenas da literatura, da história ou da vida quotidiana – ainda em meados do século vinte era frequente ver nos circos que cruzavam Portugal de lés-a-lés esse inesperado entretenimento entre números de palhaços, animais amestrados e malabaristas.
Recuperando essa ideia, um conjunto de 5 actores – Bárbara Cordeiro, Jan Gomes, Miguel Rebelo, Sofia Vasconcellos e Sá e Daniela Serra – juntou-se na belíssima (e faustosa) Igreja de São Roque, no Largo da Misericórdia ao Bairro Alto, para apresentar um espectáculo cujo objectivo é mostrar uma sequência de vinte telas “vivas” de Michelangelo Merisi (1571-1610) mais conhecido por Caravaggio, o nome da aldeia onde o pintor italiano nasceu.
Trata-se basicamente de uma sucessão de quadros humanos que em 30 segundos de imobilidade se tenta passar a três dimensões telas daquele que ficou famoso (numa época pré-barroca) pelo dramatismo da narrativa de temas bíblicos, conseguido à custa de modelos pouco convencionais e luz de difusa, e também por uma existência particularmente turbulenta. A sua vida, frequentemente no fio da navalha, enigmática e pouco conhecida, ter-se-á reflectido fortemente nos seus quadros, coisa que não acontecia com os seus coevos e nem sempre aconteceu no espectáculo em causa.
Nos circos do passado, os artistas dentro de um cilindro gigante de tecido que subia e descia por meio de roldanas, durante o menor tempo possível vestiam-se freneticamente e compunham as poses no escuro, que os espectadores apreciavam durante o tempo em que o pano permanecia no ar e o redondel iluminado. Nos quadros vivos agora encenados por Ricardo Barceló, as sucessivas mudanças de cena são feitas à vista do público em cima de um palco em frente ao altar-mor da igreja, com uma dinâmica lenta e sem sobressaltos, escolhendo os intérpretes as peças de tecido e alguns adereços simples que se amontoam sobre o estrado, com a maior das calmas e sem nada esconder.
Em alguns casos uma cortina, que dois dos actores seguram imóveis atrás dos outros, serve de pano de fundo aos quadros que basicamente se constroem com corpos e panos e uns poucos esgares nos rostos.
Apenas com luz de presença, o que não vai nada ao encontro da “estética caravaggiana”, uma banqueta e umas poucas peças, como cruzes, cordas, espadas, paus, e outras, se engendram vinte cenas acompanhadas pela Missa em Si menor BWW 232, de João Sebastião Bach, que vai ecoando pela igreja sem quaisquer pausas. E, ao contrário da maioria dos eventos que aposta na ilusão escondendo os “bastidores” e o próprio circuito dos intérpretes no progresso das obras, este exibe as sucessivas fases da preparação até culminar com o produto final.
De um modo resumido pode-se afirmar que a falta de uma iluminação adequada e de alguma surpresa no aparecimento das imagens são os pontos mais fracos do espectáculo que dura cerca de uma hora. Porém, numa época em que quase tudo é electrónico, digital e artificial – muitas vezes tocado pelo virtuosismo da manipulação – um evento artesanal, palpável e humano recebeu muitas palmas dos espectadores.
E, ao contrário da maioria dos espectáculos de imagem que apostam na ilusão, escondendo tudo o que está para além do que deliberadamente se quer mostrar, este exibe as sucessivas fases que culminam com o produto final. Coisa rara nos tempos que correm.
Fotos: Mário Duarte e Sem Asa