São João Santo Bonito[1]
São João santo bonito,
Bem bonito que ele é.
Com os seus caracóis de oiro,
E seu cordeirinho ao pé.
Não há nenhum assim,
Pelo menos para mim.
Nem mesmo o São José. (…)
A vila de Sobrado pertence ao concelho de Valongo e fica a cerca de 25 quilómetros a este do Porto, ainda dentro da grande cintura industrial da capital do Norte. Sensivelmente a meio da estrada que liga Sobrado a Alfena – onde se encontra a Casa do Bugio e do Mourisqueiro à saída da primeira localidade – pode, mesmo, vislumbrar-se um enorme entreposto comercial que deve ser um dos maiores do País.
É uma terra esguia, que se estende ao longo da Estrada Nacional nº 209, em cujos campos prevalece a agricultura – pelo que o verde dos milharais e de outras culturas ancestrais alimentadas pelas águas do rio Ferreira é uma mais-valia para a vila – mas em que o casario há muito que perdeu quaisquer laivos de tipicismo, sobretudo no centro da freguesia. Sendo uma povoação predominantemente rural, o seu património arquitectónico vai pouco além da igreja matriz, um templo barroco de dimensões modestas, datado de 1671 e dedicado ao apóstolo Santo André.
Se o S. António é o “santo popular” de maior relevância em Lisboa – cidade onde nasceu Fernando Bulhões (1195? – 1231) que viria a morrer em Pádua, Itália – já o São João adquiriu maior pujança no Porto. Tanto numa como noutra capital, as festividades, nos tempos que correm, vivem essencialmente de folia, comida e bebida e do cheiro dos manjericos e da sardinha assada. Já em Braga, a “cidade dos Arcebispos”, o 24 de Junho, naturalmente, manteve um carácter mais religioso. Vem a propósito referir que São Pedro, por outro lado, é o mais modesto dos três santos em termos de festividades. Que se celebram na Póvoa de Varzim, Sintra, Seixal e Montijo, entre outras localidades de Portugal.
As “festas juninas”, como vulgarmente se chamam no Brasil as comemorações dos santos populares, têm origem nas celebrações, crê-se que no Norte da Europa, do solstício de Verão. Em que as fogueiras acesas nas ruas marcavam a união das comunidades envolvidas. Apesar destes festejos terem uma origem manifestamente pagã, a Igreja Católica ao estender a sua forte influência pelo “velho continente” associou-lhes a celebração dos seus santos e determinou que fossem feriados religiosos para que o povo devesse rezar e, eventualmente, pudesse também se divertir.
Entre as muitas manifestações performativas associadas aos rituais católicos encontramos ainda hoje, em uns poucos lugares portugueses, as chamadas “danças mouriscas”. Que têm algum paralelismo com uma dança folclórica tradicional inglesa, ainda muito praticada no Reino Unido, a “morris dance”. Pelo que, genericamente, ambas se podem designar por um género pan-europeu, que se terá espalhado e persistido em muitos países, provavelmente, desde a Idade Média. A sua origem é desconhecida, embora todas essas manifestações coreográficas pareçam partilhar uma raiz comum. As “danças” ou “combates” de mouros – como eram denominados no Algarve – ao longo dos tempos, assumiram formas muito diversas mas mantiveram, pelo menos, uma característica principal: a sua essência masculina. Em que, curiosamente, as Bugiadas e Mouriscadas, de Sobrado, têm vindo a romper com a tradição incorporando (nos últimos anos) alguns elementos femininos. Ainda que, escondidos atrás de máscaras, dificilmente conseguem ocultar as suas formas corporais e o jeito de se movimentar.
Não só por isso, as citadas festividades, que ocupam todo o dia 24 de Junho de cada ano, mais do que uma típica romaria nortenha, com os comes e bebes, comércio de ocasião e concertos de música ligeira e popular pela noite dentro, tornaram-se numa verdadeira atracção turística (com algumas características, até, meio carnavalescas) que envolve largas centenas de sobradenses e são partilhadas com muitos milhares de forasteiros.
Pelo que, a vila, em termos de danças mouriscas, actualmente, rivaliza com Penafiel – que se situa a uns 25 quilómetros para nascente, por autoestrada – e, menos, com Braga, que fica a cerca de meia centena de quilómetros, para norte.
Os chamados Bailes do Corpo de Deus penafielenses, constituem um elemento fortemente identitário das suas festas, em que sobressai a presença de uma certa religiosidade associada à data. O emblemático e atractivo Baile dos Ferreiros, por exemplo, é executado por uma dúzia de homens munidos de espadas e é parte integrante da procissão do Corpus Christi, assim como a Dança Mourisca, o Baile dos Turcos, o Baile dos Pretos e o Baile das Floreiras (a única peça interpretada por mulheres).
Já a procissão do São João de Braga é um exemplo da reconstrução da tradição em que, no caso, se perderam as chamadas danças mouriscas, quando estas foram substituídas pela dança (bíblica) do Rei David. Diz-se que por um padre no século XVII, segundo informação veiculada pelos folhetos das Festas do São João, com origem na Câmara Municipal, numa cidade em que a autoridade eclesiástica, sem grande surpresa, ainda mantém muito do seu poder. A conhecida dança, um pouco isoladamente, surge como uma peça importante no conjunto de atracções das grandiosas festas nortenhas. De aspecto marcadamente palaciano, repetitiva e curta, é executada, em cima de um camião que, ano após ano, integra o cortejo Sanjoanino. Basicamente tudo se resume a uns passos do tipo polca que avançam alternando com umas voltas e uns passos de recuo, ao som de uma música alegre, debitados por uma figura masculina central, de coroa e capa com uma lira na mão, acompanhada por doze músicos (violinistas, guitarristas e flautistas) que também dançam à sua volta.
O Velho da Bugiada e o Reimoeiro
Por outro lado, o conjunto de danças executadas pelos Bugios e Mourisqueiros (designações respectivamente para os cristãos e os infiéis), que integram as festividades de São João Baptista, em Sobrado, têm a característica de ser autónomas relativamente à procissão religiosa. A qual também inclui o andor de S. André, padroeiro da vila, comemorado no último domingo dos meses de Novembro.
A Bugiada e a Mouriscada, actualmente, não só mantêm vivas tradições seculares, como em torno delas, se afirma, ano após ano, a adesão da maioria dos sobradenses. Os quais vivem com bairrismo, fervor e muita vivacidade a sua organização e, posteriormente, a própria interpretação dos vários quadros teatrais, que parece não terem perdido nenhum do fulgor do passado. Antes pelo contrário. Contudo, esse facto leva a admitir que à custa da introdução de “melhorias” e do uso de alguma “criatividade” – vejam-se os fatos do Velho (da Bugiada) cujos utilizadores têm a liberdade de o confeccionar adaptando-o ao seu gosto pessoal – alguns dos registos ancestrais também se irão perdendo.
Numa terra de cara alegre, engalanada para o efeito com flores artificiais e muitas guirlandas penduradas nas ruas e nas fachadas dos edifícios, sente-se no ar o brio e o esforço colocado por toda a comunidade numa festa que dura apenas um (longo) dia, mas que, indubitavelmente, requer uma aturada e cara preparação.
Baseada numa lenda, que se situa nos tempos da ocupação árabe das terras que correspondem hoje ao Norte de Portugal, a sua representação teatral aponta para quatro momentos principais: o encontro dos participantes, ao raiar do dia, o grande desfile antes do almoço, as arruadas a meio da tarde e, mais para o fim do dia, o auto, propriamente dito. Trata-se de representação dramática que encerra todas as festividades com a Dança do Santo no seu epílogo.
Logo bem cedo, a concentração matinal dos Bugios (cristãos) é na casa da pessoa que desempenha o papel de Velho e, concomitantemente, a dos Mourisqueiros (infiéis), junto da casa do Reimoeiro. É em ambos os locais que se interpretam as primeiras danças de apresentação e só depois todos os envolvidos se deslocam para um edifício isolado e fora da povoação, a supracitada Casa do Bugio e do Mourisqueiro.
Desde logo o Velho da Bugiada, que é a figura central de todo o enredo, e os seus companheiros, tentam evitar o grupo dos Mourisqueiros comandados pelo Reimoeiro, durante a refeição que se segue (curiosamente denominada “jantar”) e em que se começa a desenrolar a acção. Trata-se, segundo a tradição, de um banquete oferecido pelo rei mouro – que no sotaque nortenho se transforma em moeiro -, em agradecimento pelo empréstimo da imagem de São João (que lhe havia salvado a filha), em que surge todo o conflito. Uma vez que aquele decide não devolver o santo milagreiro aos seus legítimos proprietários. A partir daí estão lançados os dados para toda a espécie de altercações entre os dois grupos rivais que vão pelo dia fora e costumam durar até ao anoitecer.
Despois dos primeiros eventos a procissão, sai da igreja matriz, no Largo do Passal no centro da vila – que, como todas as outras, integra os devotos e as autoridades religiosas e civis da terra – com os andores a serem levados aos ombros por alguns dos coloridos Mourisqueiros, de cabeça descoberta.
O ponto mais alto, em termos de público, é, sem dúvida a Dança de Entrada. Que, praticamente, se resume a um animado desfile em duas linhas paralelas de dançarinos ao longo da via principal da vila, antes da hora do almoço. E em que cerca de quarenta Mourisqueiros – todos homens solteiros com trajes inspirados em uniformes militares do sec. XIX -, em ritmo de marcha (tocada por uma banda) se apresentam saltitantes de espadas em riste. Os ruidosos Bugios – bem mais de meio milhar no dia 24 de Junho de 2023 – posteriormente, seguem a mesma banda que, igualmente, vai tocando a marcha de São João ao longo da via que, naturalmente, se fecha ao trânsito.
Estes apresentam-se como um grupo de folgazões, de todas as idades, com as caras cobertas por máscaras e golas de renda, envergando fatos multicor, chapéus com muitas fitas e castanholas e rabos de raposa nas mãos. Curiosamente, as mulheres mais afoitas foram-se introduzindo no cortejo, a coberto da ocultação do rosto, e houve, mesmo, na edição de 2023, uma família em que mãe e filha desfilaram e cabriolaram pela estrada fora, enquanto o pai as seguia atentamente, ocupando-se da logística da dupla participação. Terminando a empolgante parada no Largo do Passal, onde em 2008 foi inaugurada numa rotunda uma escultura alusiva às festas, aí encontram-se dois palanques altos de madeira, na linha descendente em direção ao templo.
Na hora de maior calor (estival), muitos dos sobradenses recolhem a casa e reúnem-se à mesa com familiares e amigos, certamente para ganhar fôlego para a longa tarde em que avizinha no largo principal e em que se sucedem as danças e os entremezes que completam a função. Manda a lenda que a última parte das festas – e inquestionavelmente a mais dramática e que parece ser a preferida dos autóctones -, se traduza num complexo episódio sem palavras, mas com muita pólvora à mistura. Depois das Entrajadas, sensivelmente no início da tarde, surgem várias figuras simbólicas (camponês, cego, moço, sapateiro e mulher, protagonizada por um descabelado travesti) que deambulam pelo Passal simulando acções agrícolas (semear, gradar, lavrar – curiosamente pela ordem inversa do que manda a Natureza) e de crítica social. Quase sempre com alguma rudeza e, mesmo, um pouco de brutalidade à mistura. Tratando-se de uma interacção entre pessoas que se conhecem – e que, no passado, não ficariam imunes às piadas sobre assuntos privados que são tornados públicos nas supracitadas Entrajadas – enquanto o interesse dos turistas na narrativa transforma-se num prazer quase puramente visual. Tanto é que, após a Dança do Doce – em que os Mourisqueiros saltitam em linhas, ao toque da caixa, no pátio da Casa Paroquial para no epílogo receberem cavacas e limonada oferecidas pelo pároco -, a recta final dos eventos, uma vez mais, remete todas as atenções para o ponto nevrálgico da vila.
No extenso largo – em que não faltam barracas de comes e bebes e de diversão – sobressaem os palanques, que simbolizam os castelos dos émulos e atingem a altura da copa das árvores junto das quais são, anualmente, erigidos. Num abrigam-se os cristãos e noutro regurgitam os mouros e, entre os dois grupos, galopa um mensageiro, em cima dum intrépido cavalo, que, de um modo simbólico finge trocar mensagens entre participantes dos dois lados da contenda. Chegados ao pôr-do-sol, a “altercação” arrasta-se ao som de uma banda de música que, num coreto adjacente, toca uma pesarosa toada. Enquanto um narrador – uma vez que toda a acção é mimada – vai descrevendo, através de um altifalante, os esforços que o Velho (acompanhado por dois Doutores da Lei) faz para não ser atacado pelo Reimoeiro dentro do seu “reino” que, na prática, se resume a um pequeno estrado de madeira quadrado. A voz masculina, de tom dramático, cria um particular impacto nos espectadores, sendo que, no caso dos forasteiros que não conhecem os detalhes da lenda, a narrativa é uma mais-valia para se ir entendendo o complexo conteúdo da diegese.
É de notar que parte do evento é acompanhado por ruidosos disparos de pólvora seca de espingardas primitivas no alto dos palanques, já que é suposto os bugios defenderem o seu castelo até que as munições se esgotem. Sem mais defesas e quase noite dentro, apesar das súplicas do cristão e de duas crianças que repetidamente apelam à liberdade do ancião, ele é, finalmente, aprisionado pelo mouro. Mas, pouco tempo depois, o herói da trama, que é retirado vencido do palanque, é salvo pela chegada de uma espécie de serpente gigante – manipulada por um veloz grupo de sobradenses – que chega à praça para afastar os gentios e deixar o rei dos bugios fugir à sua frente no meio da multidão.
E é com a chamada Dança do Santo, oferecida por cada um dos grupos beligerantes – em separado – junto da igreja e acompanhada pelos Tocadores da Bugiada (orquestra constituída por violas braguesas, rabecas e violinos), que o São João termina em Sobrado. Que, como se assinalou, traduz-se numa série de encadeamentos coreográficos masculinos intercalados por vários quadros repletos de pantomima. Uma vez que certas danças coincidem no tempo, para além da complexidade da urdidura – parâmetro deveras anormal em eventos de cariz popular – nem os espectadores podem acompanhar todos os detalhes do evento nem alguns dos bailes que, aliás, se desenvolvem em lugares próximos mas numa geografia algo confusa para o visitante.
No que respeita às músicas que, em tempos idos, acompanhavam estes eventos, é impossível saber como soavam. Originalmente, a forma musical das “danças mouriscas” seria a de uma marcha guerreira ou a de uma dança palaciana, cuja forma, provavelmente, não se assemelha em nada à música de origem árabe que hoje conhecemos. Sendo que as bandas filarmónicas chamadas a acompanhar as imagens dos santos, na procissão matinal e que posteriormente são integradas na festa, conferem um ar mais cosmopolita e, mesmo, modernizado ao evento.
Quanto às coreografias originais das diversas danças também muito pouco ou nada se sabe. Apenas que, por referências esparsas, temos conhecimento que a Igreja Católica assimilou, a partir da Idade Média, costumes dos mouros, dos judeus e, mesmo, dos negros, provavelmente inserindo-os nas suas festas carnavalescas, na danças macabras e, principalmente, nas procissões do dia do Corpo de Deus.
Refira-se, a título de exemplo, que em Penafiel a chamada Dança dos Turcos era, em tempos idos, a mais apreciada pelos nativos e pelos visitantes e que, quando aquela se perdeu há cerca de meio século, o Baile dos Pretos terá ganho esse estatuto. Por outro lado, as famosas danças dos pauliteiros de Miranda (do Douro), no Nordeste de Portugal – que bem poderiam incorporar algumas festas sanjoaninas ou, mesmo, as do Corpo de Deus -, provavelmente, tiveram na sua origem uma forma de lutas de espadas que, por uma questão de economia de meios e da segurança dos intérpretes, foram substituídas por pequenos paus cilíndricos.
Em resumo, nas festas de Sobrado – que se realizam, desde o amanhecer do dia de São João até ao pôr-do-sol, e não na véspera, como é hábito nas celebrações dos santos populares nas grandes capitais – os mourisqueiros terão sido transformados, nas últimas décadas, nos “maus” da história, ao contrário dos “bons”, os bugios. Embora sejam os infiéis as personagens que aparecem com trajes mais aprumados ao contrário dos cristãos, de aspecto, assinale-se, um pouco mais desalinhado. Aliás, no caso das Bugiadas, os “bons” não vencem necessariamente os “maus”, e é pela vertiginosa intervenção de uma bicha-serpente (conhecida na terra por Serpe) que, no final, se põem os “maus” em debandada.
Neste caso particular, a manipulação da memória deve-se, provavelmente, às lembranças dos indivíduos que foram reinventando uma “tradição” agregadora, mantendo o gosto por uma celebração secular que parece ter vindo a funcionar por camadas que se vão sobrepondo, ao invés de obedecer com determinação e perseverança a directivas fixas e monolíticas.
Texto e fotos: António Laginha
[1] A letra desta marcha popular é atribuída ao cineasta António Lopes Ribeiro (1908-1995)