A cidade de Berlim é, sem qualquer sombra de dúvida, um local verdadeiramente extraordinário em termos de arquitectura contemporânea e de urbanismo. No que concerne a salas de espectáculos, para além de uma oferta impressionante em termos de qualidade – de grande imponência e beleza – e quantidade, deve ser, mesmo, a única cidade do mundo em que, numa só avenida, a Unter den Linden (alameda sob as tílias) se encontram dois teatros de ópera: a Komische Oper e Deutsche Staatsoper. Naquela que é uma das mais importantes e extensas avenidas berlinenses desenvolveu-se grande parte da vida cultural da cidade até à II Grande Guerra. Só depois da queda do famigerado Muro, e com a reunificação das Alemanhas, é que esse harmonioso “quilómetro e meio de álea” recuperou o seu prestígio, animação e actividade artística.
Se bem que o interior do edifício, em estilo neo-clássico, da Ópera Estatal de Berlim não se possa comparar em excelência decorativa e antiguidade com uma peça de arquitectura como o lisboeta o Teatro Nacional de São Carlos – e algumas conhecidas salas oitocentistas europeias – é certo que aquela instituição prima pelo prestígio e superior qualidade da música e da dança e, naturalmente, constitui um importante foco artístico da actual Berlim. Curiosamente numa cidade com uma história tão conturbada e agora, como muitas outras, com um forte fluxo turístico, o seu público continua a manter uma aura algo burguesa. Como, aliás, seria de esperar pelos altos preços praticados. Sobretudo nos espectáculos de ópera que, nos grandes teatros, até costumam ser mais elevados que para a dança ou para concertos de música erudita.
O programa da companhia de bailado berlinense número um – algo subalterno em relação ao estrepitoso rol de óperas na presente temporada – estreado no início de Maio é bastante invulgar já que abriu com uma peça de um russo-americano, George Balanchine (1904-1983), coreografada na América, o conhecido Tema e Variações, e prosseguiu com duas, The Second Detail, criada no Canadá, e Oval na Alemanha, coreografadas por dois norte-americanos, respectivamente William Forsythe e Richard Siegal – que durante dez anos, de 2005 a 2015, foi director associado da Forsythe Company e agora dirige o Ballet of Difference, sedeado em Munique.
Uma das obras-primas de Balanchine, Tema e Variações, foi interpretada com particular elegância, classe e distinção, e, na noite de estreia, a 4 de Maio, praticamente, sem qualquer falha. Ainda que mais “redonda” que na versão novaiorquina do New York City Ballet – curiosamente foi dirigido por Paul Connelly um dos mais experientes e conhecidos maestros de bailado do mundo que já esteve à frente das orquestras das mais importantes companhia norte-americanas, mormente a do City Ballet – não perdeu o glamour a ela associado. Antes pelo contrário. Até porque a música de P. I. Tchaikovski foi interpretada com uma sonoridade perfeitamente mágica.
Com fatos em tons de azul, assinados por Elsie Lundström, tocados por uma beleza calma e transparente a obra perdeu aquele elã – energia e entusiasmo – com que se apresenta em Manhattan e parece ter-se aproximado do espírito com que é dançada na terra natal de Balanchine, São Peterburgo. A tal não será alheio ao facto do par principal ser de nacionalidade russa: Maria Kochetkova (artista convidada) e Daniil Simkin. Apesar da baixa estatura, ambos dominaram o palco e todas as dificuldades técnicas da exigente coreografia. Poder-se-á mesmo afirmar que foram brilhantes na execução e demonstraram uma enorme segurança, para além de possuírem uma presença verdadeiramente aristocrática. Os solistas e o corpo-de-baile – onde marcou presença a jovem portuguesa Filipa Cavaco – passaram para o público a irrepreensível claridade corográfica de Balanchine e um verdadeiro atestado de profissionalismo.
Já The Second Detail, de William Forsythe para a música (electrónica e gravada) de Thom Willems, foi criada em 1991 para o Ballet Nacional do Canadá e é uma peça que se desenrola num palco nu apenas habitado por uns bancos alinhados no fundo e com uma luminosidade branda e sem grandes dramatismos. Durante uma boa meia hora 14 bailarinos entram e saem com particular nonchalance, balançando as ancas, arqueando os torsos, cortando o ar (com as pernas ágeis e extremamente velozes) e redopiando no seu eixo ou, mesmo, fora dele. Todos parecem correr atrás de intrincadas combinações geométricas balizadas por ritmos que parecem sempre diferenciados.
As bailarinas dançam em sapatilhas de pontas, mas sem um único ponto em comum com a estética e a funcionalidade clássica. Os fatos, assinados por Yumiko Takeshima – e Issey Miake que desenhou um vestido branco esvoaçante para uma inusitada solista que dança descalça – são simples mas muito depurados, sem um efeito ou detalhe que pareça desnecessário, nos corpos de homens e mulheres sem qualquer marca de género.
Bastante virtuosos, os artistas – designadamente a espantosa ballerina cubana Yolanda Correa – desempenham o seu trabalho com calculada frieza, rigor e precisão. Já que outra coisa não seria de esperar de um criador para quem coreografar “é, em alguma medida, organizar corpos no espaço, corpos com outros corpos, em diferentes planos e orientações no espaço”. Mas em que “o bailado é uma tecnologia do corpo e não uma ideologia”.
A estreia da soirée foi Oval, da responsabilidade de Richard Siegal, bailarino e coreógrafo norte-americano há muito estabelecido na Alemanha. Para além de artista muito premiado na Europa e Estados Unidos da América, Siegal, muito ligado a Forsythe na sua carreira, não se afastou muito do ideário do seu “mestre”, mas apostou em movimento com tons bem mais escuros.
Dançado quase sempre debaixo de um anel gigante em que são projectados sucessivos e mutáveis efeitos luminosos, Oval, é, por assim dizer neste programa, um prolongamento da peça de Forsythe, mas menos subtil e bem mais ofegante.
Com música também electrónica – de Carsten Nikolai – por vezes com uma sonoridade quase “perfurante” uma dúzia de bailarinos vestidos com fatos com transparências e também plastificados (em cor de carne e negro) juntam-se em pequenos grupos que se desfazem com a mesma facilidade com que se formam num impressionante non-stop e numa constante mutação. Tal confere uma aparente liberdade a um tipo de dança em que todo o vocabulário pode entrar mas em que o aspecto final pode ser algo confuso. Até porque o enorme dispositivo cénico que coroa a peça, muitas vezes, rouba o protagonismo aos artistas que se movimentam no palco, uma vez que os repetitivos riscos luminosos coloridos acabam por magnetizar muitos dos espectadores. No final, o grande anel – que pode ser redondo ou oval – desce uns metros e a obra terminou sem grande impacto cinético ou visual, para o alívio de alguns ouvidos e a excitação de muitos espectadores que aplaudiram com redobrado entusiasmo.
Em resumo, o programa da Deutsche Staatsoper, que estará em cena até 22 de Junho, apresenta três danças abstractas em que o movimento, basicamente, fala por si e, de um modo genérico, o virtuosismo físico e técnico não deixa qualquer espaço para emoções ou sentimentalismos. Pelo que, a companhia parece apostar mais num certo deslumbramento junto dos seus consumidores do que em, verdadeiramente, despertar alguma inquietação nos espectadores.
Fotos: Yan Revazov