Com a apresentação no Teatro Camões de duas obras, respecivamente de Rui Lopes Graça e Vitor Hugo Pontes, terminou o “ciclo Paulo Ribeiro” na Companhia Nacional de Bailado (CNB). Ainda que tenha saído há muitos meses, a sua substituta decidiu manter integralmente a programação por ele gizada e que, provavelmente, não irá deixar grandes saudades nem, muito menos, alguma marca num reportório bastante discutível e muito pouco discutido. Infelizmente, no nosso país, aqueles que pagam (com os seus impostos) uma estrutura de âmbito nacional são, justamente, os a que menos ao Ministério da Cultura importa a sua opinião! Também na dança a política entrou de um modo avassalador e sufocante estando certa gente mais preocupada em cumprir agendas e objectivos que nada têm a ver com artes e sobretudo com competência, rigor e integridade intelectual.
A verdade é que a CNB não possui um reportório palpável (nacional e, sobretudo, consistente) e que, em vez de integrar, marca uma fronteira entre o clássico e o contemporâneo. Algumas vezes com “clássicos” – que deles só têm o título – e outras com uma certa dança contemporânea que, objectivamente, se integraria num qualquer conjunto “de autor” ou num grupo de contornos puramente “experimentalistas”. E ainda há quem se surpreenda ver o teatro cheio quando há tutus e pontas e, quase só para “convidados”, quando os bailarinos andam aos tombos e, deprimentemente, a rebolar-se pelo chão.
Anette, Adele e Lee é o título da obra de abertura e refere-se a três bailarinos estrangeiros que sapatearam, em estúdio, para servir de base ao som que David Cunningham engendrou para Rui Lopes Graça. Segundo se afirma no próprio programa.
Na primeira parte, entram e saem de uma cortina negra às tiras no fundo do palco, onze bailarinos vestidos com fatos cortados na cintura com duas cores contrastantes, colados aos corpos, da autoria de João Penalva. Em todas as combinações numéricas possíveis, só ao fim de cinco minutos os artistas com linhas impecáveis e grande limpeza técnica, executam todos uma curta sequência em uníssono. As combinações propostas são altamente dinâmicas, compostas por saltos, piruetas, corridas e intrincadas “baterias” (de pernas) com inesperadas alterações de direcção e muitos golpes de ombros, não deixando o olhar poisar na superfície do palco. Mais uma vez a memória de (Merce) Cunningham invade o Camões, como a ténue luz da aurora, sem pedir autorização. A iluminação simples, mas efectiva, de Nuno Meira realça as cores quentes das roupagens dos artistas que aparecem e desaparecem sempre na mesma linha de fuga ao longo de meia hora, diluindo-se no próprio escuro.
Um curto trecho em adágio, praticamente com todos os bailarinos de corpos bem esticados em cima de uma das pernas executando movimentos lentos e controlados, constitui a segunda parte. Momento em que os fatos unissexo são de cor azul, deixando todos com as pernas nuas. Enquanto a música passa de uma percussão “miudinha” a grandes marteladas que entram pelos ouvidos dentro. A terceira e última parte – muito mais curta – recupera os traços da primeira com as suas intricadas combinações de passos, em cânones e uníssonos, que os jovens artistas da CNB executam com particular frescura, desenvoltura e rigor. Ainda que a proposta seja manifestamente abstracta – logo, divorciada de qualquer inquietação ou, mesmo, ideologia ou histrionismo – e que Anette, Adele e Lee sejam meros nomes que nada dizem aos bailarinos e, muito menos, aos espectadores, a clareza da obra (que estaria em mais vantagem para encerrar o programa) deu um certo ânimo a todos aqueles que, felizmente, ainda gostam, de ver dançar com alguma espécie de técnica e de métier.
Após o intervalo surgiu Madrugada, uma obra com 13 (o número do azar) intérpretes, que se podia resumir apenas numa frase: quando a música bate horas a fio nuns jovens numa discoteca um automóvel pode apitar no fim da noite para anunciar que é tempo de deixar certas substâncias… Trata-se de um trabalho simplista e imediato, na forma, e em que os intérpretes criam a sua própria dialética com um conteúdo que aparentemente falha em existir.
Victor Hugo Pontes partiu de uma premissa básica: bailarinos a dançar per si numa discoteca – cada um com o seu mundo e as suas idiossincracias – que se tocam ou se evitam de um modo casual e algo alienado. De um espaço básico: um rectângulo claro onde se encontra um automóvel real, um tripé alto com uma bola iluminada e dois microfones. De uma música (assinada por Rui Lima e Sérgio Martins) de inimaginável familiaridade para todos os que frequentam espaços nocturnos. E, finalmente, de um “método” que frequentemente agrada aos intérpretes e serve bem os coreógrafos: a criação partilhada.
Parece ser uma obra em que em pouco mais de meia hora se passa tanta coisa – narrativas mais ou menos irrelevantes e cenas tão déjà vu – que deixa a sensação que, acabada uma noitada numa discoteca se desvanece o enorme frenesim com as mulheres descabeladas e descalças e um rapaz em cuecas, risos misturados com choros e perplexidades arrancadas ao quotidiano e ao universo do foro psicológico, mas em que não se passou nada!
Na realidade tudo é tão banal, efémero e deprimente que, nisso, Vitor Hugo Pontes não deixou de nos brindar com uma obra que pode servir, entre outras coisas, para afastar os fantasmas de alguns espectadores e a angústia de outros. E que se poderia, eventualmente, personificar apenas num dos artistas em cena – para citar apenas o que mais se metamorfoseou – Lourenço Ferreira.
Fotos: Hugo David