JORGE GARCIA (1935-2021) UM MESTRE, UMA OBRA

JORGE GARCIA (1935-2021) UM MESTRE, UMA OBRA

Considerado por muitos, um dos mais notáveis professores da dança clássica que trabalharam em Portugal no século XX, Mestre Jorge Garcia, nasceu em Cuba, viajou pelo mundo com um passaporte francês, mas deixou o seu coração em Portugal. Onde viveu, intermitentemente, durante quase meio século.

Cerca de ano e meio após o seu desaparecimento, e coincidindo com as comemorações dos 45 anos da fundação da Companhia Nacional de Bailado, a sua direcção aproveitou a quadra festiva do Natal para remontar uma das suas mais importantes obras, Giselle, no Teatro Nacional de São Carlos.

A presente exposição, que decorre em paralelo com a apresentação do icónico bailado romântico, tem como objectivo dar a conhecer o percurso artístico daquele cujo nome foi, inicialmente associado ao Ballet Gulbenkian, mas que ficou também conhecido em Portugal pelo trabalho que, durante quase duas décadas, desenvolveu na Escola Artística de Dança do Conservatório Nacional e, em simultâneo, na Companhia Nacional de Bailado.

O seu legado artístico e pedagógico é muito expressivo não só em Portugal como em países como a França, a Bélgica, a Itália, o Brasil e os Estados Unidos da América, entre outros.

Para além de dar a conhecer também um lado menos público da vida do Mestre Garcia – e por isso o redobrado interesse desta exposição – uma parte da original mostra deverá seguir para uma universidade nos Estados Unidos da América, no ano de 2024.

Rudolfo Nureyev, P.A., Rosella Hightower e Jorge Garcia

 

Jorge Fausto García García, nasceu em Camagüey e 19 de Dezembro, de 1935, e faleceu em Lisboa a 8 de Agosto, de 2011. Foi bailarino, mestre de bailado, coreógrafo e director artístico tendo começado a sua carreira sob a direcção de Fernando e Alicia Alonso, no Ballet Nacional de Cuba. Aí, a diversidade do reportório e o contacto com mestres russos garantiram-lhe uma sólida formação na Dança Clássica. Em simultâneo, preparou-se para uma carreira pedagógica com a ballerina cubana Menia Martinez, o professor, também cubano, José Parés e pedagogos soviéticos do Ballet Bolshoi (de Moscovo) e do Teatro Mariinski (de São Peterburgo). Estudou também, em La Habana, artes dramáticas e direcção de cena.

Depois de se tornar coreógrafo, em 1964 – a sua primeira obra foi Majísimo, que ainda está presente no reportório do Ballet Nacional de Cuba e de muitas outras companhias –, Jorge Garcia fez digressões pela América, Europa e Ásia, o que muito enriqueceu a sua carreira. A residir na Europa desde 1966, foi sucessivamente, premier danseur do Ballet da Ópera de Lyon (França) e do Ballet da Valónia (Bélgica), mestre de bailado e coreógrafo daquela companhia belga, do Balletto del Teatro La Fenice (Itália), do Nouveau Ballet da Ópera de Marselha (França) e do Ballet Gulbenkian (Portugal).

Em 1976  a Fundação dos Teatros do Estado do Rio de Janeiro convidou o artista para reorganizar e dirigir o Ballet do Teatro Municipal. Esteve no Brasil até 1979, tendo regressado a França como mestre de bailado do Ballet Théâtre Français de Nancy e do Ballet National de Marseille, sob a direcção de Roland Petit.

Na qualidade de professor convidado, coreógrafo e pedagogo, Jorge Garcia trabalhou regularmente com companhias de dança clássica e contemporânea de grande prestígio, como o Royal Winnipeg Ballet (Canadá), o Corpo di Ballo del Teatro alla Scala, o Ballet do Teatro di San Carlo de Nápoles e o Atterballetto (Itália), o Ballet de Monte-Carlo (Mónaco), o Ballet da Ópera de Lyon (França), o Boston Ballet, o American Ballet Theatre e o Alvin Ailey American Dance Theatre (USA), Carlos Acosta e Amigos (UK), o Ballet Gulbenkian e a Companhia Nacional de Bailado (Portugal).

Deu cursos e master classes no Banff Center (Canadá), no Festival Internazionale della Danza (Veneza – Itália), no Festival Internazionale del Balleto (Nervi, Itália) e nos Cursos Internationais de Dança da Madeira (Funchal – Portugal), entre outros.

Entre as peças que coreografou contam-se Majísimo, Amazónia, A Noite de Walpurgis, Sinfonia nº 39, Tanagras, Três Movimentos, Duo, Variações Sinfónicas e Consolações, assim como danças para óperas e remontagens dos bailados Giselle, La Fille Mal Gardée, O Lago dos Cisnes, Paquita, Le Grand Pas de Quatre, As Sílfides e A Bela Adormecida, entre outras.

Durante 19 anos (1991-2010) Jorge Garcia foi professor e coordenador da disciplina de Dança Clássica da Escola Artística de Dança do Conservatório Nacional (Lisboa) para a qual coreografou La Fille Mal Gardée, em 2002.

 

T E S T E M U N H O S

Carlos Acosta  (Reino Unido)  

Estou certo que quando o Jorge Garcia coreografou Majísimo não podia prever que a sua obra se tornaria num bailado famoso e muito aplaudido. O mesmo tem sido dançado em todo o Mundo e mais do que qualquer outro trabalho de um coreógrafo cubano. Para mim foi um prazer incluí-lo no programa de  celebração do 30º aniversário do Birmingham Royal Ballet, em 2020. Dançar, então, Majísimo foi um balão de oxigénio para a companhia e, definitivamente, deu-nos a nós e ao nosso público – 20.000 pessoas tiveram a oportunidade de o ver online – uma imensa alegria em tempos tão difíceis. Noto, a finalizar, que a música de Massenet nunca tinha sido interpretada pela Royal Ballet Sinfonia e foi maravilhoso dar-lhe a oportunidade de tocá-la.

Marta Athayde (Portugal)

Muito se falou do excelente  trabalho  de Jorge Garcia, que perdurará  para  sempre  na história da dança portuguesa. Foi um mestre de bailado  de grande  exigência e elevado profissionalismo que nos transmitiu, durante  largos anos no Ballet Gulbenkian,  a sua escola  cubana  misturada com a escola Vaganova. Tinha  um estilo  único,  muito próprio e de extrema qualidade na “técnica de pontas” e nos vários  estilos  que  tão bem  soube  transmitir, sobretudo, às bailarinas. Foi um enorme  privilégio tê-lo tido como professor ao longo de várias décadas e a nossa amizade, para além do trabalho na Fundação Calouste Gulbenkian, perdurou até ao último dos seus dias.  Jamais esquecerei o admirável Mestre e o grande Amigo que perdi nem das belas palavras que me escrevia em cartas e postais.

Mercedes Cabanach (Portugal)

Depois de me estabelecer em Lisboa, a convite do Ballet Gulbenkian, trabalhei em diversas companhias de dança designadamente na Companhia Nacional de Bailado, na Companhia de Dança de Lisboa e na Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo. Mas foi na Escola Artística de Dança do Conservatório Nacional que conheci o Mestre Jorge Garcia com quem convivi 18 anos consecutivos. Tenho muito orgulho em ter participado na formação de muitos alunos que hoje são profissionais de alto gabarito integrados em várias companhias nacionais e estrangeiras. A convivência diária com o Mestre Garcia, proporcionou uma amizade, cumplicidade, carinho e amor profundos. Foi uma aprendizagem mútua ao longo de muitos anos sedimentada por uma enorme admiração e respeito. As nossas aulas eram, frequentemente, uma explosão de emoções e, tenho a certeza, que deixou saudades e granjeou a admiração de todos os seus alunos. Hoje, mais de um ano e meio após o seu desaparecimento, sinto muito a sua falta, já que estávamos em constante contacto e as nossas conversas eram sempre muito especiais. Mas o Jorge vive cada dia comigo através da música e, por isso, estará sempre presente no meu coração.

Anna-Marie Holmes (Estados Unidos da América)

Conheci o Jorge Garcia durante muitos anos e fomos sempre grandes amigos. Quando veio para Portugal foi lecionar na minha Academia Internacional de Dança do Estoril. Gostei dele desde o primeiro momento e fiz muitas das suas aulas pela Europa fora. Mais tarde, quando dirigi o Ballet de Boston convidei-o para professor e ensaiador da companhia. Posteriormente foi ele que me recomendou para professora convidada e ensaiadora do Ballet du Théâtre Français de Nancy. O Jorge coreografou umas poucas peças para mim e deu-me apoio artístico em alguns bailados clássicos de reportório. O seu método de ensino era claro e sempre muito preciso. As portas da sua casa em Lisboa estiveram sempre abertas para mim e, também por isso, ficámos amigos até ao último dos seus dias. Na verdade continuo a ter imensas saudades dele.

Tatiana Leskova (Brasil)

Vi pela primeira vez o Jorge Garcia no Rio de Janeiro, quando veio para o Brasil para dirigir o nosso Teatro Municipal. Desde logo percebi que era um excelente professor, com uma óptima metodologia de dança clássica e um profissional do mais alto gabarito. O resultado da sua escola de origem cubana, complementada com a russa, fez com que ele conhecesse muito bem a arte da Dança. As suas aulas eras extraordinárias e remontava muito bem algumas obras do reportório académico-clássico. Algumas das quais deixou aos artistas brasileiros. Tenho muitas e boas lembranças dele. Com quase 100 anos posso afirmar que os bailarinos têm uma memória muito curta – esquecem-se muito rapidamente das pessoas que passam pelas suas vidas – o que é muito injusto. Jorge Garcia, que nos deixou o exemplo uma boa “escola” de bailado, parece ser uma rara excepção pois há muita gente que parece continuar a seguir os seus ensinamentos.

 Paola Cantalupo e Peter Lewton-Brain (França)

O Mestre Garcia ficou ligado a muitos e memoráveis momentos das nossas carreiras. Foi da sua produção de Giselle, que dançámos em Lisboa, que saiu o pas-de-deux do II acto que foi premiado na Competição de Ballet de Osaka e que também interpretámos na Ópera de Paris e em muitos palcos internacionais. Esse trabalho fortaleceu a nossa colaboração que se prolongou por mais de duas décadas nos Ballets de Monte-Carlo, onde o Jorge foi, regularmente, professor convidado. A sua apurada visão crítica, que nos fazia evoluir infinitamente, e a sua profunda paixão pela dança, guiou-me para, hoje, dirigir o Pole National Supérieur de Danse Rosella Hightower, em Cannes, e o Peter no seu trabalho e nas suas pesquisas em medicina e ciências da dança. Estamos-te muito gratos, para sempre, querido Jorge.

Jean-Christophe Maillot (Mónaco)

Quando cheguei aos Ballets de Monte-Carlo, em 1992, tive o privilégio de descobrir Jorge Garcia, então o Professor Convidado da companhia. Fui, desde logo, seduzido pelas suas competências técnicas e o seu fino conhecimento do vocabulário clássico. A eles juntava-se uma forma de distanciamento e de constante bom humor que tão bem caraterizavam essa personagem. Jorge Garcia era uma personagem. Truculento, generoso e incrivelmente talentoso… a sua presença, como Professor Convidado, era uma evidência para mim e tomei por dever manter essa relação ao longo de anos maravilhosos passados na nossa companhia.

Isabel Seabra (Itália)

Recordar Jorge  Garcia, mestre, coreógrafo, director e amigo fez-me abrir o coração e voltar ao fim da década  de 70 do século passado, quando eu era uma baby ballerina e estava no fim do curso de dança da Escola Estadual de Dança Maria Olenewa, no Rio de Janeiro. Quando saiu o edital do concurso para admissão no Corpo de Baile do Teatro Municipal, já se falava na possibilidade  do maravilhoso Maestro cubano vir a ser o próximo director da companhia. Muitos de nós tínhamos a consciência da importância dessa nomeação na vida dos bailarinos clássicos. Com grande optimismo e alguma coragem, apresentei-me na audição e, desde logo, percebi que ele iria apostar na minha carreira. Já na companhia, deu-me a possibilidade de fazer o meu primeiro espetáculo profissional, na peça Modulações Concretas, do coreógrafo brasileiro Carlos Morais.  Essa grande generosidade fazia parte da vida ética e profissional  do Mestre Garcia. A referida obra foi um trampolim para a minha vida e carreira e, a partir daí, ele sempre me incutiu coragem e determinação, aconselhando-me, posteriormente a tentar singrar no mundo da dança na Europa, onde cheguei a estrela do Scala de Milão. Lembro-me sempre do Jorge Garcia com gratidão, respeito e muito carinho, pois os seus preciosos ensinamentos foram uma constante na minha vida. Direi, mesmo, que tive a sorte de receber sábios conselhos que muito contribuíram para a minha evolução artística.

Alicia Alonso em Giselle (sentada) e Jorge Garcia de pé atrás (circa 1957)

Exposição no vestíbulo do Teatro Nacional de São Carlos, inaugurada a 3 de Dezembro de 2022

Giselle, pela CNB, Dezembro de 2023

Published by Antonio Laginha

Autoria e redação

António Laginha, editor e autor da maioria dos textos da RD, escreve como aprendeu antes do pretenso Acordo Ortográfico de 1990, o qual não foi ratificado por todos os países de língua portuguesa.

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