Mundialmente conhecido por Corpus Christi, Solenidade do Santíssimo Sacramento do Corpo e do Sangue de Cristo ou Corpus Domini (expressão latina que significa Corpo de Cristo ou Corpo do Senhor), e em Portugal apenas como Corpo de Deus, é uma comemoração litúrgica da igreja católica marcada anualmente para a quinta-feira seguinte ao chamado domingo da Santíssima Trindade, o que se segue ao de Pentecostes. Isto é, o Corpo de Cristo celebra-se no sexagésimo dia após o domingo de Páscoa, fazendo assim a ligação com a Última Ceia de Quinta-feira Santa.
A origem da solenidade litúrgica do Corpo (e Sangue) de Cristo remonta ao século XIII, tendo começado a ser celebrada em 1246 na cidade de Liège (Bélgica), alargada à Igreja latina em 1264 pelo Papa Urbano IV e regulada pela bula “Transiturus” que a dotou de missa e ofício próprios. A Portugal terá chegado nos finais daquele século. Ordenada por D. Dinis (1279-1325) as festividades do Corpus Christi começaram a ser celebradas em 1282, embora haja referências à sua comemoração desde os tempos do seu pai Afonso III (1248-1279), rei de Portugal e dos Algarves.
No passado era obrigatório, nessa quinta-feira, uma ida à santa missa e frequentemente também participar em procissões que passavam por ruas ornamentadas com tapetes coloridos com desenhos de inspiração religiosa.
Nas palavras do Patriarca de Lisboa, Rui Valério, nos festejos de 2024, “através da manifestação presente do seu corpo, Jesus Cristo vive connosco, é o Emanuel e pela força do seu amor e serviço à humanidade fez-se vítima imolada por nós no altar do sacrifício”.
Sendo feriado nacional (entre 2013 e 2015 o dia foi retirado da lista mas regressou em 2016) a maioria dos portugueses, actualmente, aproveita apenas para descansar e até há muitos que, mais perto do litoral e com o calor que já se faz sentir na época, usufruem da pausa para ir à praia.
Para além da componente religiosa propriamente dita, as festividades eram no passado complementadas com danças e folias em que, como era hábito, o sagrado e o profano se misturavam.
Exemplo disso são as celebrações seculares, na véspera do Corpo de Deus, no Norte de Portugal, designadamente em Ponte de Lima e Penafiel.
Na primeira localidade, perante milhares de pessoas a Vaca das Cordas sai às ruas ao fim da tarde numa tradição que remonta ao século XV (1646) e no presente atrai visitantes de vários pontos do país e, mesmo, de Espanha. Trata-se, na verdade, de uma lide em que um touro – e não uma vaca porque então na Ibéria era um animal sagrado – preso por cordas passa pela zona histórica da vila e dá três voltas à igreja matriz, antes de ser conduzido para um extenso areal onde acontecem pegas improvisadas e outras manifestações de entretenimento à custa do bicho.
Na segunda, curiosamente, a festa faz-se pela manhã e à noite, respectivamente com o Cortejo do Carneirinho e a Cavalhada, partindo e regressando ambos os desfiles ao campo da feira, com uma paragem estratégica em frente ao edifício da Câmara Municipal, onde os participantes se manifestam perante as autoridades locais e uma multidão de populares.
Se o evento matinal hoje reúne muitas centenas de crianças dos jardins infantis e escolas primárias do concelho, com o intuito expresso de homenagear as dedicadas professoras e professores, já o da noite apresenta outro tipo de objectivos, designadamente históricos, sociais, artísticos, etnográficos e, mesmo, de cidadania. Como era esperado que todos os mesteres se incorporassem na procissão do Corpo de Deus, a mostra da véspera tinha como propósito passar no crivo das autoridades que, assim, teriam oportunidade de licenciar as danças e os trajes, para que o decoro e os bons costumes fossem respeitados no âmbito da cerimónia religiosa.
O Carneirinho resume-se a uma ruidosa parada – na qual muitos pais também se associam à caminhada acompanhando as crianças – em que, basicamente, à frente de cada grupo escolar segue um pequeno carro com um animal que no epílogo é ofertado aos docentes (eventualmente para se transformar em anho no forno ou na brasa), como forma de agradecimento pelo seu aturado trabalho humano e pedagógico. A verdade é que a organização, nos anos mais recentes em que certas forças políticas e a própria Provedora nacional do animal se têm manifestado pelo bem-estar dos animais, tem tentado driblar a tradição sugerindo que os animais que seguem no desfile sejam apenas de peluche. Felizmente que alguns “resistentes” continuam a levar os seus pacíficos cordeirinhos que, aliás, fazem as delícias da criançada, que prima pela candura e pelo colorido das vestimentas. É, pois, muito possível que esta piedosa tradição se tenha mantido quase inalterável durante séculos, já o mesmo não se poderá dizer da Cavalhada nocturna em que o desfile também abre com um casal de foliões gigantones que dançam ao som de bombos. E que, no primeiro caso, o citado elemento aparece algo deslocado de um universo infantil que domina todo o evento.
Tal como o nome indica a Cavalhada é uma celebração tradicional com origem nos torneios medievais, em que a nobreza exibia publicamente a sua destreza e valentia em cima de cavalos. Inicialmente tratava-se de torneios que serviam como exercícios militares nos intervalos das guerras e em que nobres e guerreiros cultivavam certas praxes associadas à luta e à galanteria. Também era comum simular-se um campo de batalha em que pelejavam cristão e mouros, algumas vezes com um enredo vagamente baseado na História do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França, uma colectânea de histórias fantásticas subtitulada o mais lindo e maravilhoso romance de cavalaria e de exaltação da fé cristã que se tem publicado.
Segundo alguns especialistas, provavelmente a maioria dos elementos arcaicos hoje associados à Cavalhada (e no dia do Corpo de Deus integrantes da “majestosa” procissão que percorre as ruas de Penafiel) têm vindo a perder a sua identidade e até complexidade, aparecendo hoje algo “folclorizados”, sobretudo no que concerne aos trajes que no passado eram certamente bem mais modestos. Também as músicas que acompanham as partes dançadas e mimadas poderão ter sofrido grandes alterações ao longo dos séculos.
O principal interesse do evento, que se inicia com a chegada da Serpe (uma espécie de dragão verde) seguida duma charrete rodeada de cavaleiros na qual se desloca o representante do povo – que faz uma paragem para discursar e levar oferendas ao presidente da câmara e vereação -, são os chamados bailes, associados aos ofícios antigos e grupos profissionais da cidade. A sua participação foi decretada no Tombo das Festas do Corpo de Deus, documento de 1657 reformulado em 1705, 65 anos antes da passagem da vila a cidade. Era obrigação dos mesteres “contribuir com animação, em forma de dança ou baile teatralizado, que representasse a atividade artesanal da referida corporação, ou outra qualquer tarefa que lhe viesse imposta conforme deliberação exarada no respetivo Tombo das Festas”. Danças como a Mourisca (representada pelos alfaiates, albardeiros e vendeiros), a dança da Retorta (apresentada pelos sapateiros e tosadores), a dança dos Moleiros (interpretada pelos moleiros do Cavalúm e rio Sousa), a dança das Espadas (pelos ferreiros e serralheiros) e outras, já aparecem referenciadas no citado documento seiscentista. Sabe-se que “em 1705 se deu a reforma dos capítulos da festa, documentada em novo Tombo, criando-se novas danças e obrigações para a concretização da festa solene. No entanto, por determinação régia de 1724, as danças foram banidas das procissões, não podendo mais os grupos atuar durante o cortejo religioso, integrando apenas o conjunto de figurantes passivos do desfile. Vários concelhos não cumpriram durante décadas a postura régia, e em Penafiel apenas no séc. XIX se verificou o definitivo afastamento dos Bailes da procissão propriamente dita, passando estes a actuar na véspera do Corpo de Deus, na cerimónia da Cavalhada. Ao longo da segunda metade do séc. XX a maior parte destas curtas danças ou intermezzos dramatúrgicos deixaram de se realizar, à excepção do Baile dos Ferreiros, que desde sempre se manteve ativo e é justamente a dança masculina mais apreciada e a que com muita vivacidade abre o cortejo.Entrando triunfalmente com as suas longas espadas em punho, dezasseis homens saltitantes trajados de branco com apontamentos de vermelho e um arranjo floral na cabeça sob o comando de um líder, repetem sucessivamente um mesmo padrão coreográfico que de circular passa para corridas rápidas que se desenvolvem em linhas paralelas. Os movimentos ágeis, acompanhados apenas com as sonoridades de uma gaita de foles e um tambor (caixa), são ampliados através da ligação das espadas seguradas por ambas as mãos de todos os integrantes, como se se desmultiplicassem nas sucessivas ondas que se vão criando. O padrão deste baile, na verdade, parece bem mais intrincado do que realmente é porque a sua execução apresenta alguma dose de surpresa e é acompanhada de uma rapidez que destoa no conjunto das outras danças.
Segue-se o Baile dos Pedreiros que, com martelos nas mãos, simulam uma desavença profissional entre o mestre e os seus oficiais, criando uma dramaturgia pouco convincente e, acima de tudo, demasiado arrastada. Na falta de profissionais masculinos – presentemente muitos dos envolvidos nas obras e construção civil em Portugal até já são emigrantes – aparecem algumas mulheres e todos, a determinada altura, sentam-se no chão e desenrolam um farnel que comem na frente dos presentes. Infelizmente esse apontamento é pouco explorado pois é breve e não funciona como um forte e afectivo elo de ligação entre os intervenientes.
O Baile das Floreiras apresenta umas duas dezenas mulheres de cestos com flores cantando e dançando pausadamente e, no final, ofertam ramos e pétalas aos espectadores. Tal como nos bailes seguintes praticamente não existe qualquer tipo de coreografia nas movimentações do conjunto.
O Baile dos Pauzinhos – que é um dos mais recentes – vai buscar o seu nome ao par de baquetas castanhas que os participantes (masculinos e femininos) levam nas mãos. À primeira vista este número parece ser um familiar distante dos pauliteiros nordestinos de Miranda que, à míngua de espadas, são conhecidos por cruzam e bater com os respectivos paus de madeira com particular animação e garra festiva.
Se o Baile dos Ferreiros é o mais singular, enérgico, complexo e coreografado – por vezes a intenção dos seus intérpretes parece ser a constituição de uma pequena máquina de guerra que avança contra os espectadores – o dos Turcos é aquele em que mais se dialoga apresentando uma estrutura dramática precisa associada a um auto que narra um (agora indolente) combate entre cristãos e infiéis. Contudo, é uma peça pouco convincente na sua interpretação pois na falta de elementos masculinos – alguns guerreiros já são mulheres – as duas linhas em confronto nunca parecem ser movidos pela testerostona nem terem como objectivo qualquer tipo de peleja. E o efeito dramático final, de um anjo a sair de uma enorme pedra, perde-se após um pouco persuasivo aniquilamento de um dos reis beligerantes que cai por terra mas que nunca chega a motivar um esperado combate entre as partes belicistas.
Um facto algo estranho foi a deliberada (e lamentável) exclusão do Baile dos Pretos do desfile que, no passado, representava a história de um grupo de escravos negros alforriados com a sua vistosa dança de fitas. Em nome do “politicamente correcto” surgiu o “desastradamente seguidista” que só pode empalidecer a cultura popular e nada traz de bom às (inócuas) artes regionais.
Ainda assim o desfile dura cerca de três horas acabando por, na recta final, desmotivar alguns espectadores que pouco a pouco vão abandonando o espaço em que se desenrola o núcleo central do evento. O que não é de estranhar, pois se na maioria das vetustas festas populares cuja origem se perde nos tempos o auge da animação fica para o final, na forma em que actualmente se apresenta a Cavalhada em Penafiel o ritmo – para além da notória falta de convicção de alguns intérpretes – vai abrandando e a alegria esmorecendo. Porém, a sua singularidade e as óbvias ligações às “mouriscas” – o São João Baptista chamado “Bugiada” em Sobrado em Junho, a Festa dos Caretos, em Torre de Dona Chama, em Dezembro e o Auto da Floripes, em Neves, em Agosto – fazem deste evento muito mais que uma mera curiosidade turística.
Com o desaparecimento no sul de Portugal, onde as reminiscências árabes são muito mais persistentes, das Danças ou Combates de Mouros é pois, perto da bacia do rio Douro, mais precisamente em Sobrado (no concelho de Valongo) e em Penafiel, que ainda se pode assistir a duas manifestações populares extraordinárias – e com alguma autonomia relativamente às práticas religiosas – que têm raízes em tradições que, no presente, parecem estar mais acauteladas em terras espanholas, nas Festas dos Moros y Cristianos, respectivamente nas cidades de Valência, Alicante e Múrcia.
AL