No ano em que Portugal comemora meio século sobre a libertadora e empolgante Revolução dos Cravos, o Ballet Nacional de Cuba (BNC) voltou a Lisboa com dois espectáculos esgotados no Centro Cultural de Belém e um elenco e reportório bem diferentes daqueles com que se apresentou triunfalmente no Teatro Nacional de S. Carlos, em Maio de 1975.
Ainda assim, o carinho com que os portugueses sempre receberam a icónica companhia, seja nos belos jardins de Seteais, em Sintra, ou no amplo Coliseu dos Recreios, em Lisboa, faz do conjunto de Havana um dos grupos de bailado clássico mais acarinhados pelo povo português.
É certo que em 50 anos tanta coisa mudou no mundo das artes e da política – já para não mencionar a evolução do maléfico “aquecimento global” -, mas Cuba tem resistido de bandeira erguida continuando a exportar a sua dança para nações pacíficas (como Portugal) e que querem continuar a viver em liberdade e à margem de todos os conflitos.
Já não estão entre nós a grande Alicia Alonso, nem o marido Fernando e o cunhado Alberto Alonso (os fundadores do BNC). Também desapareceu do mundo dos vivos um dos maiores mestres cubanos de sempre, Jorge Garcia – que durante cinco décadas teve residência em Lisboa – e já não existe a Associação Amizade Portugal-Cuba, que trouxe a companhia em digressão nos anos 70 do século passado a Lisboa, Almada, Évora, Braga e Coimbra.
Alícia, que foi a estrela incontestada – a nível planetário – do bailado cubano durante uns 60 anos (só com alguma concorrência da bailarina e professora Menia Martinez que fez carreira na União Soviética em jovem e que depois de deixar Cuba se estabeleceu na Europa, onde ainda vive) foi um caso de longevidade e de dedicação à dança, único no mundo. Por isso o seu legado, nos aspectos positivos do seu percurso – e numa época em que Fidel Castro a impunha como uma espécie de “guerilheira” da dança -, ainda hoje não deixa de se considerar icónico. Por tal, a sua sucessão à frente daquela que foi uma das maiores companhias de bailado do século vinte, não terá sido pacífica e haveria de recair sobre os ombros de Viengsay Valdés, uma das muitas estrelas cubanas formadas na escola que Ramona de Saá (recentemente desaparecida) tão bem soube erguer sobre a direção da família Alonso. Curiosamente, como na sua primeira digressão a Portugal, os cartazes do BNC que antes exibiam Alicia no Lago dos Cisnes, agora mostram Viengsay (com Dani Hernández) em Double Bounce.
Mas o extraordinário grupo trazia então no elenco duas mãos cheias de bailarinos de excelência – que é sempre bom recordar – como a própria Alicia Alonso, as quatro jóias do bailado cubano (Josefina Mendez, Mirta Plá, Aurora Bosch e Loipa Araújo) e o grande Jorge Esquível, para além de nomes electrizantes como Amparo Brito e Lázaro Carreño, só para citar os mais impressionantes. Já o BNC de 2024, à míngua de estrelas que se foram espalhando na diáspora, tornou-se uma companhia muito jovem e aberta a um reportório menos clássico que, naturalmente, já não assenta na personalidade e nas caraterísticas artísticas da sua prima ballerina assoluta. Essa “libertação” da figura tutelar de Alicia deixou para trás décadas de grandes clássicos (como Giselle ou D. Quixote) e algum reportório de coreógrafos cubanos, dando lugar a um reportório que é um pot-pourri de peças, muitas das quais com europeia.
O programa que em Lisboa agradou a um público que, decerto, não tem memórias de outros tempos de glória e muita excitação, iniciou-se com Didenoi, um trio vestido de branco e coreografado por uma galega sobre duas (belas) canções da autoria e na voz da nossa estimada cantora Dulce Pontes. Ainda que Maruxa Salas tenha construído uma obra que, basicamente, se propõe navegar as notas de uma guitarra, tendo à mistura uns laivos de sentimentalismo, fica longe de plasmar uma contemporaneidade a que o grupo continua a parecer alheio.
As próximas peças, também curtas, foram a já citada Double Bouce, do canadiano Peter Quanz, com uns figurinos e cenografia com bolas pretas e vermelhas de Anne Armit, interpretada com humor, algum virtuosismo e muita segurança por Viengsay – que teve um filho há relativamente pouco tempo – e Hernández, que se mostrou um bailarino com boa presença e personalidade; Rítmicas (do cubano Ivan Tenório que o BNC dançou em 75 em Portugal), é um dueto para dois bailarinos que se inicia numa barra mas que, para além de um academismo algo estéril, se mostrou muito datado; e A Morte de um cisne, um solo masculino que começa com um vento artificial antes da chegada da música de Saint-Saëns, que Anna Pavlova tornou imortal. Michel Descombey criou uma versão masculina do famoso solo de 1905, ao qual Yankel Vásquez imprimiu uma atractiva plasticidade .
Curiosamente, a surpresa da noite foi Majíssimo, uma bailado espanholado e abstracto, com música de Jules Massenet e coreografia de Jorge Garcia – que desde a sua estreia em 1965 a direcção do Ballet de Cuba nunca excluiu do reportório – que nos deu um pouco da essência da velha companhia de Havana. A obra, que o desaparecido Ballet Gulbenkian estreou em 1974 com uns figurinos infinitamente mais ricos e elaborados, continua a ser um “crowd pleasing” que parece não envelhecer e que Alicia vendeu para inúmeras companhias, antes do seu autor, o Maestro Garcia, a ter remontado no American Ballet Theatre, a pedido de José Manuel Carreño, e no Royal Ballet para outro bailarino cubano notável, Carlos Acosta.
Depois do intervalo, e a terminar a soirée, o BNC, apresentou todo o seu elenco (e mais alguns alunos da escola Fernando Alonso) na Sétima Sinfonia de Beethoven, com coreografa de Uwe Scholz (1958-2004), um artista alemão precocemente desaparecido e que está representado com uma peça na Companhia Nacional de Bailado.
Trata-se de um trabalho longo, escorreito e muito baseado na monumental partitura, que não dá descanso tanto aos solistas como ao corpo de baile, durante uns bons 40 minutos. Na linha dos chamados “bailados sinfónicos”, que têm por matriz obras que não foram compostas para serem dançadas, normalmente destacam-se pelo número de intérpretes – que almejam competir com o número de instrumentos – e nem sempre pela sua inventiva. Scholz produziu uma obra algo convencional e que entretém o olhar do espectador, mas pouco diversificada em termos de movimento. Nela se destacaram Chavela Riera e Ányelo Montero, no primeiro andamento, a sensual Sadaíse Arencibia e Yunior Palma, no segundo, Grettel Morejón e Luís Fernández, no terceiro, e a experiente Anette Delgado, no quarto, ao lado de Hernández.
Esta, que terá sido a quinta ou sexta passagem por Portugal da mais famosa companhia das Caraíbas – mais uma vez a caminho de Espanha e de outros países do “velho continente” -, brindou-nos com um reportório algo “europeu”, sem o espírito revolucionário (dos cravos de Abril de outrora) nem os bailado clássicos que Alicia tão bem copiou e adaptou ao espírito alegre e à “ginga” dos artistas cubanos. Em resumo, Havana enviou-nos em 2004 uma selecção de obras mais ou menos estimulantes protagonizadas por uma companhia muito jovem e enérgica com a promessa de continuidade sob a batuta de Viengsay Valdés, cuja tarefa, nos tempos que correm, se afigura nada menos que hercúlea.
AL