A apresentação no Teatro Camões (que esteve em obras) de mais duas peças coreográficas que vão engrossar a lista de bailados importados pela Companhia Nacional de Bailado (CNB), Supernova e The Look, respectivamente das duplas Iratxe Ansa-Igor Bacovich e Sahron Eyal-Gai Behar, coincide com um ciclo que se fecha, a direcção de Carlos Prado, e um novo que já começou com Fernando Duarte à frente dos destinos da companhia.
Será justo, nesta ocasião, referir que o director cessante foi artista dos elencos da CNB e do extinto Ballet Gulbenkian, tendo sido formado na Academia de Dança Contemporânea de Setúbal, fundada por Maria Bessa (1938-2023) e António Rodrigues. Durante os últimos três anos foi um dedicado trabalhador que se concentrou, maioritariamente, nos artistas da casa, desafiando as suas potencialidades e trazendo para o agrupamento alguns coreógrafos de nomeada.
Fernando Duarte, que também saiu daquela escola e, no passado, foi bailarino principal, professor e coreógrafo da companhia e co-director do grupo Dança em Diálogos, é o primeiro diretor concursado na CNB e irá responder com o seu programa perante os artistas e o público português nos próximos quatro anos.
Na história de quase meio século da CNB pode afirmar-se que por ela passaram, no início, um director português reputado de bom e, posteriormente, uns que não deixaram grandes saudades, tendo pelo meio sido contratados alguns estrangeiros que se revelaram clamorosos erros de casting, leia-se, de inusitada nomeação pela tutela. Hoje apresenta-se em cena como um organismo em que pontuam artistas jovens, ecléticos e empenhados, com um reportório que abarca a dança clássica e a contemporânea, mas que nem sempre tem feito jus à História do Bailado Português.
Na presente temporada, que se estende até Julho de 2025, este e os próximos programas foram gizados por Carlos Prado, pelo que teremos que esperar alguns meses para que se verifiquem algumas alterações de fundo em matérias programáticas. Oxalá a companhia venha, em simultâneo, a dar um necessário e esperado salto, com a coragem de quem assuma verdadeiras mudanças e procure que uma companhia nacional – como o seu nome explicitamente indica – faça justiça a trabalhos de qualidade vindos do passado e criados no presente por coreógrafos e bailarinos portugueses talentosos e com provas dadas no país no estrangeiro que, quantas vezes, têm sido imerecida e sistematicamente ignorados.
SUPERNOVA
A dupla Ansa-Bacovich é um caso de sucesso na dança europeia e é constituída por uma bailarina basca (que foi uma conceituada artista no extinto Ballet Gulbenkian) e um italiano, que tem construído uma sólida carreira em palcos internacionais.
A sua dança, Supernova, estreada em Basileia o ano passado, parte do conceito de “explosão estelar” que “ocorre durante os últimos estágios evolutivos de uma estrela massiva ou quando uma anã branca inicia uma fusão nuclear descontrolada”.
O bailado começa com apenas um bailarino no centro do proscénio – coberto por uma camada de restos de papel negro – em silêncio e uma luz sobre a cabeça vinda duma espécie de céu que vai adquirindo novas estrelas conforme surge um trio, quartetos, quintetos ou um conjunto de duas dezenas de artistas que entram e saem nas mais variadas e intrincadas combinações. A escrita coreográfica é rica e surpreendente assim como a maestria com que o casal de coreógrafos manipula os sucessivos grupos de bailarinos, integrando sempre novas soluções. Os criadores potenciam nos corpos dos artistas uma escrita ondulante que alimenta o olhar fornecendo soluções formais que desafiam a imaginação dos espectadores . Trata-se de uma obra com uma meticulosa tessitura, muito fotogénica e que se socorre de um vocabulário rico e de constantes alterações de dinâmicas, sobre uma partitura do norte-americano John Adams. Intitulada Shaker Loops, esta serve de sólida base e força motriz convincente para uma dança que, até, estranhamente nos tempos que correm, se pode considerar bastante “musical”. Não tendo qualquer tipo de cenografia (apenas luzes penduradas da teia do palco) e sendo os trajes azuis escuros e bastante irrelevantes, é pena que o brilho das (falsas) estrelas não seja suficientemente forte para mostrar com veemência a expressão dos bailarinos. A deliberada despersonalização já se tornou numa espécie de moda que está a reduzir muitas obras a uma amálgama de corpos anónimos que se movimentam na relação inversa da energia com a luminosidade. Ainda assim, Supernova, que não dá tréguas aos artistas durante uma boa meia hora, permanece um objecto muitíssimo atractivo e com algumas linhas coreográficas de pragmática beleza e notável inventiva.
O VISUAL
Se The Look (O visual), uma peça para uns 21 bailarinos assinada pela israelita Sharon Eyal, e criada em 2019 de colaboração com Gai Behar em Israel, tivesse trazido ao palco do Teatro Camões, um pouco mais de côr e luminosidade, o programa não teria parecido tão soturno. É uma daquelas obras cujo título nada diz e que temos que esperar até ao seu epílogo para descortinar qualquer relação de causa-efeito entre o movimento e a respectiva proposta conceptual.
Torna-se claro que, desde o início, perante uma espécie de bouquet de bailarinos no centro do palco de costas, quase inertes, vestidos integralmente de cinzento e muitas vezes envolvidos por uma deliberada penumbra, o público é obrigado a concentrar-se quase em exclusivo no alto volume da música de Ori Lichtik. Também é verdade que a “escola” Ohad Naharin/Batsheva, com o seu Movimento Gaga (uma linguagem que faz parte do treino diário da companhia de Tel-Aviv), apurou com Hofesh Shechter – de quem o director cessante da CNB também adquiriu uma peça – a recorrência a uma certa violência auditiva imposta aos espectadores. Que, por sinal, parece gostarem dessa situação cénica, por vezes incómoda e desnecessária.
De um modo geral, todo o início da obra pauta-se por troços de movimento, muito controlado e autónomo – só nas cabeças, nos braços ou nas mãos – em que, depois, sobressai um solista, João Costa, e dois rapazes (Miguel Ramalho e Frederico Loureiro) que, simetricamente, se viram de frente e se distanciam do grupo avançando nos seus movimentos em uníssono para a boca de cena.
Na verdade, o impacto da obra aposta mais numa exaustiva repetição de gestos minimalistas, contidos e sincopados – para além do perfurante volume musical – do que na espessura do próprio material coreográfico.
Vestidos de preto com simples fatos lisos unissexo colados ao corpo, os bailarinos fazem de Look um trabalho algo redutor com movimentos rápidos, nervosos e contidos, em que ninguém sai de cena e as mudanças de luz (branca) não se mostram particularmente expressivas.
Trata-se, pois, de um programa que comporta duas obras contemporâneas de qualidade, a primeira mais cinética e a segunda mais hipnotizante que, de certo modo, dividiram o gosto do público na plateia. Mas que, integradas separadamente em futuros programas, muito provavelmente poderão suscitar maior empatia. A verdade é que o público mais jovem no teatro, alegadamente, vibrou com a segunda dança que, mais idiossincrática e ruidosa, parece ter contagiado os olhos e os ouvidos que se encontram mais em sintonia com o inesgotável mundo virtual.
fotos: Hugo David