AS MORNAS TEMPESTADES DE RUI LOPES GRAÇA NA CNB

AS MORNAS TEMPESTADES DE RUI LOPES GRAÇA NA CNB

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Como é sabido, o problema da gestão das expectativas pode, em muitos casos, ir muito para além de uma mera equação emocional. Sem se aproximar do nível da questão filosófica, a verdade é que uma peça teatral que dá pelo nome de “Tempestades” e que foi incisivamente associada a um expressivo movimento literário do século dezoito – o sturm und drang – deveria implicar, de alguma forma, verdadeiros estado de medo, tristeza, nervosismo, desalento, raiva ou outros…

O coreógrafo associado à Companhia Nacional de Bailado (CNB), Rui Lopes Graça, propôs-se, mesmo – neste Outono meteorologicamente tempestivo – dar voz à emoção, ao impulso e às paixões insensatas. Triângulo ambicioso, sensível e comovente, ao serviço de um esquema coreográfico que, com tudo tão bem planeado e empolado, até seria uma lástima não ser “modern, trendy, cool and… artsy”.

Um grupo de pouco mais de uma dúzia de bailarinos jovens – demasiado verdes para a tarefa, dir-se-ia – vestidos como para um qualquer desfile de moda, por Marina Sá Nogueira, e outros tantos músicos da Orquestra de Câmara Portuguesa (sob a direcção do percussionista Pedro Carneiro) também de aspecto juvenil e ágil em cima do palco tocando sem partitura nem maestro, envolveram-se em acções diversas espalhando-se pelo proscénio em grupos que se formam e desfazem como espuma na beira da praia. Só que em vez de fortes chuvadas, ventos ciclónicos e cheias sufocantes – se a metáfora é permitida – assistimos no palco do Teatro Camões a uma espécie de brisa que não levantou ondas nem, mesmo, agitou as folhas murchas das árvores do Parque Expo.

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Apesar de esteticamente agradável em termos visuais a falta de novidade – a nível de criatividade coreográfica e de linguagem terpsícoreana – é um dado incontornável. É que se a coreógrafa (sénior) Olga Roriz, nos últimos anos, tem se vindo, repetidamente, a citar a ela própria – sobretudo nas peças concebidas para a CNB – e o anterior director da companhia, Vasco Wellenkamp, a misturar belas partituras de autores clássicos com música enlatada para alongar as suas obras, nada menos estimulante que ver um coreógrafo mais jovem cair num mesmo tipo de truques e “clichés”. Se em muito mais de metade do século vinte, relativamente às obras ditas “clássicas”, pensadores, críticos e um público mais exigente intelectualmente e defensor do paradigma da invenção e da modernidade, se queixaram de piruetas em catadupa, saltos atléticos em amplitude e extensões de membros até à exaustão, o que se dizer, em 2014, de cabelos esvoaçantes, corpos convulsivos, quedas sucessivas, esgares forçados, tagarelices ininteligíveis e barulheira gratuita?

“Tempestades” inicia-se num palco negro e descarnado onde apenas se encontra uma armadura gigante com projectores no solo e, do lado oposto, um ecrã rectangular suspenso do tecto e onde se projectam imagens de plantas! Os bailarinos surgem todos da esquerda baixa e os músicos (empunhando os respectivos instrumentos) da direita alta antes de se emparelharem num clima amistoso e algo cúmplice. Por eles passa uma figura solitária e misteriosa, vestida de vermelho sangue e encapuçada, que, desde o início, se encontra imóvel no centro do palco. Mas esta imponente personagem acaba por não se desenvolver como tal acabando por não ter leitura nem afirmar a sua presença na peça. Depois dessa espécie de prólogo começam as “hostilidades” entre bailarinos e músicos, que se enrolam uns nos outros e se vão se desmultiplicando em cena… Se o conjunto, por vezes, adquire um clima simbiótico, em algumas das sequências dançadas sofre daquilo a que se pode denominar o “pecado bauschiano”: toda a gente vê dançar mas ninguém consegue descobrir a mais pequena razão para que os artistas se movam! Frequentemente o bailado impõe-se pela sua forte vertente técnica, sobretudo a nível do elenco masculino, mas não passa grande coisa para a plateia, porque a mensagem é equívoca e a trama demasiado lassa. A obra, que não é, de todo, abstracta – temos bailarinos a fingir que riem e outros que choram e todos falam sem que a narrativa sobressaia – também não aposta numa retórica linear. Situa-se, assim, num perigoso limbo em que o movimento dos corpos não é suficientemente atractivo, já para não dizer intelectualmente eloquente.

A dança, que foi precedida de vasta informação e até de uma conferência em que se fez alusões a poetas maiores como Goethe e Schiller e a um pré-romantismo em que se evidenciou o conflito entre artistas e o poder instituído, provavelmente não fará grande história. Até porque, como tudo o que se faz na CNB, em termos de crítica e comprometimento social e político, os temas focados são completamente anódinos. O que é compreensível numa companhia que vive à sombra dos poderes instituídos mas, por demais, lamentável.

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Presume-se, pois, que caído o pano sobre corpos enérgicos e comprometidos embalados pela música celestial de Haydn entrecortada por segmentos que lembram a “música concreta” dos anos 40 e 50, poucos se lembrarão de alguma sequência de movimento, expressiva e tocante, que tenha acontecido em cima das tábuas do Camões, durante pouco mais de uma hora que é o tempo de duração da peça. Mais parece um dança que se situa a meio de qualquer coisa – e o público, maioritariamente convidado, entendeu isso perfeitamente com a morna resposta que deu no epílogo do bailado – provavelmente entre o parecer e o ser… Ainda assim salvou-se um dueto envolvente e bem articulado protagonizado por Isabel Galriça e Ricardo Limão e alguns momentos a solo de Miguel Ramalho e de Irina Oliveira.

No final de “Tempestades” os bailarinos, todos vestidos de negro, quase se confundem com a cor das paredes do palco. Solitário, um deles permanece em cena e as luzes extinguem-se lentamente deixando, nos espectadores, uma sensação ambígua entre a quietude e o vazio, a poesia e a ausência e, nos artistas, provavelmente não muito mais que uma benéfica sensação de dever cumprido.

Fotos: Rodrigo de Souza

Published by Antonio Laginha

Autoria e redação

António Laginha, editor e autor da maioria dos textos da RD, escreve como aprendeu antes do pretenso Acordo Ortográfico de 1990, o qual não foi ratificado por todos os países de língua portuguesa.

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