Depois de se estrear em Dresden, na Alemanha em Outubro passado, a Culturgest apresentou no seu grande Auditório – quase esgotado – a obra de Rui Horta (e bailarinos) “Hierarquia das Nuvens”.
Trata-se de uma peça sem cenografia – no final apenas um emaranhado de arames suspenso por uns fios quase invisíveis sobe atrás no palco – em que o movimento, individualizado e espalhado pelo proscénio, toma a parte de leão e alguns bailarinos um protagonismo algo desusado em peças ditas contemporâneas! Mas tal não é injusto até porque, como é sabido, Horta sempre se apoia muito no feed back que os artistas aportam aos seus “desafios”/ “estímulos”/ “agenda”. Quanto à dramaturgia parece algo vaga, para não dizer, inexistente, surgindo o movimento completamente desierarquizado e com muito tremor à mistura…
A obra (que se pretende poética e resulta um pouco morna) começa com os artistas subindo ao palco com rolos de papel nas mãos. Sylvia Rijmer desenrola e amarrota muito papel cenário no fundo do palco e, desde logo, impõe a sua magnífica presença com um solo tocado pela limpidez, leveza e fluidez. Alguns dos bailarinos saem dos bastidores, cada um por si.
Num patamar semelhante ao de Sylvia apresenta-se Teresa Alves da Silva que, definitivamente, faz subir o nível coreográfico. Não é por acaso que duas bailarinas do extinto Ballet Gulbenkian (em 2005) sobressaem num elenco em que as mulheres têm contribuições mais estimulantes que os rapazes. Para além das citadas, participaram ainda Filipa Peraltinha e Sílvia Bertoncelli e os bailarinos Luis Marrafa, Philip Sanger e André Cabral. Este último, com muita garra e um sólido desempenho, voltou a conquistar os aplausos do público sobre o mesmo palco em que, há uns meses, tinha brilhado na última peça de Clara Andermatt (“Fica no Singelo”).
Vestidos com roupas sóbrias em tons mortiços e pernas nuas, mas com corpos habitados pela energia e muito focados no trabalho, rasgam papel, socam papel, lutam por papel, vestem-se com papel, esticam papel e até debitam uns inusitados risos algo nervosos. Depois de muitos solos, alguns duetos e uns poucos conjuntos, no final, fazem bolas de um muito martirizado papel, que são atiradas indiscriminadamente pelo ar, da direita para a esquerda do palco. No início há mesmo um enchumaço de papel amassado dentro da braguilha de um dos homens e no final surge uma monumental marreca dentro da camisa, nas costas de outro. Farrapos de memória, exibição despudorada ou pura provocação?
Os sons, predominantemente de cordas e piano, são creditados a vários compositores mas, se por um lado, criam algumas zonas de envolvimento com o movimento, na maior parte do tempo não passa de uma espécie de “incidental music” que não vai muito além disso… Apesar de uma visível economia de meios – designadamente a utilização de materiais baratos como papel e arame – a obra só ganhou com isso pois surge divorciada de truques cenográficos e luminotécnicos, tão ao gosto do coreógrafo sediado em Montemor-o-Novo. O que se revela uma mais-valia no trabalho de Rui Horta que, à míngua de uma linguagem reconhecível (porém já há muito reconhecida), tem apostado numa certa elasticidade e eclectismo formais. Entre “poética” e “nuvens” fica uma peça muito bem interpretada, sem grandes sobressaltos nem pretensões explícitas mas que encerra um certo decoro e alguma contenção.
Texto: António Laginha
Fotos: Mariana Silva