A SAGRAÇÃO DOS GUERREIROS DE QIN SHI HUANG

A SAGRAÇÃO DOS GUERREIROS DE QIN SHI HUANG

Se há música que já foi dançada milhares de vezes, em milhares de lugares, por milhares de bailarinos e por centenas de companhias, desde a sua estreia em 1913, é, seguramente, a “Sagração da Primavera”. Obra-prima e primordial de Igor Stravisnki (1882-1971).
Em Portugal conhecem-se duas versões lusas na Companhia Nacional de Bailado (CNB), respectivamente, de Carlos Trincheiras (1984) e de Olga Roriz (2012). Mas poder-se-á referir que, para além de uma suposta “reconstituição” da versão original de Nijinski, para os Ballets Russes, assinada por Millicent Hodson e Kenneth Archer (também no reportório da CNB) as interpretações do tema – e da música – que se consideram “clássicas” serão as de Massine, Béjart, Tetley, Graham, Baush, van Manen, Taylor, Morris e Preljocaj, entre outras.
Contudo, a do Quorum Ballet (QB), da autoria de Daniel Cardoso, cuja estreia em Portugal aconteceu no dia 21 de Abril de 2018 , no Teatro D. João V, na Damaia, tem a particularidade de ter sido criada na China – mais precisamente em Xangai – com sete artistas nacionais e sete chineses, em Janeiro passado.
Pelo que se conhece da companhia sedeada na Amadora é fácil presumir que esta “segunda versão” – que só incluiu dois bailarinos chineses, Jiang Wei e Zhang Yixiang – não deve ter ficado nada atrás da original. Naturalmente, por razões de ordem económica (o QB é, provavelmente, a mais internacional das companhias portuguesas e a menos apoiada pela Direcção-Geral das Artes) não foi possível trazer todo o elenco oriental. 

Do programa apresentado, dividido por quatro peças, há que começar por referir que a obra de Stravinski é, de tal modo avassaladora, que tudo o que se mostra antes ou depois, raramente, não fica em desvantagem. E que, a ideia de “colar” a obra dançada ao “exército de guerreiros de terracota de Xian”, cujas réplicas se mostraram em Lisboa em 2017, é absolutamente original.

O espectáculo, intitulado “Made in China”, começou com um homem estático sozinho em cena, o próprio coreógrafo, a quem se vai juntando, pouco a pouco, todo o grupo numa espécie de ensaio improvisado em que o criador vai dirigindo as sucessivas operações. No caso vertente, com movimento cru e minimamente organizado, numa sistema de estrutura acumulativa. A música que acompanhou essa espécie de “exercício colectivo” – da autoria de Jorge Silva – é, relativamente, “pacífica” e “discreta” e uns caracteres chineses projectados atrás dos bailarinos foram dando o mote ao espectáculo. 

A segunda peça, com coreografia da chinesa Xie Xin e a terceira (de Xin e Cardoso e música do mesmo compositor) foram concebidas com um certo racionalismo e exigência técnica, tendo se revelado um bom “aquecimento” para o desafio que se lhe seguiu. Sem, no entanto, acrescentar grande coisa ao reportório da companhia. Homens e mulheres (estas de calças largas pretas, como eles, mas com uma faixa vermelha sobre o peito) foram desenhando pares e grupos –  quase sempre por género – em que perpassou a ideia de relações mais ou menos íntimas e mais ou menos cúmplices. Tratou-se de “mais do mesmo” (do tipo de movimento que os bailarinos do QB fazem regularmente em outras peças) sem grande originalidade nem muita “alma”. Mas, também, sem despertar grande entusiasmo nem no palco nem na plateia. Ainda que os artistas da jovem companhia – desta vez com alguns “reforços” – sejam enérgicos, versáteis, atractivos e verdadeiramente focados no seu trabalho.

Quando se começaram a ouvir os primeiros acordes da partitura de Stravinski, os bailarinos foram entrando no palco – com uma cenografia mínima – vestidos com umas túnicas curtas e soltas em vários tons de azul, vermelho ocre e cabelo atado no alto da cabeça, como os elementos da guarda do primeiro imperador chinês. Ao pintar com as mãos os próprios corpos com uma tinta argilosa, os artistas ficaram com um misterioso ar “enlameado” e, em simultâneo, algo telúrico.

Com o evoluir da música uma vertigem parece ter-se apoderado de todos os corpos que vão reagindo à pulsação e abraçando os ritmos complexos e altamente desafiadores da impressionante partitura. A determinada altura o coreógrafo fez os bailarinos introduzirem umas grossas peças de espuma cinzentas que tanto pareciam lajes de pedra como blocos de cimento e que, na prática, serviam de almofadas para os artistas, ao se atirarem destemidamente para o ar, amortecem a aterragem e cair no solo em segurança.

O conjunto, como sempre, apresentou-se vigoroso e altamente dinâmico numa composição coreográfica particularmente “musical” evoluindo para um clímax em que não há nenhuma rapariga (escolhida entre a “comunidade”) para assumir o (esperado) sacrifício. Ao invés, desce um vara com umas peças de roupa penduradas junto ciclorama – que exibe um painel elíptico gigante, branco e vertical que já assumira outras posições – que os bailarinos recolhem e vestem ficando com grandes semelhanças com as belas figuras de terracota descobertas em 1974 e hoje consideradas “Património Mundial da Humanidade”.

É, pois, nesse rito de transformação que a peça se resolveu, sem brutalidade nem a costumeira proposta executória, porém, embalada por uma espécie de ancestral primitivismo. 
De salientar o trabalho irrepreensível de todos os intérpretes – e o regresso ao QB da excelente Inês Pedruco – que mostraram um trabalho que, por vezes aéreo, manteve uma misteriosa ligação à terra. Embora não cimentado numa ideia obsessiva de ritual, movimentos angulares e violentos, em círculos e linhas,  e esgares na faces transfiguradas dos intérpretes geraram um bailado suficientemente teatral para fazer sair da terra o “espírito” dos vetustos guerreiros, tão distantes e tão próximos dos espectadores.
Como epílogo deve acrescentar-se que a imaginativa peça merecia estar inserida num programa mais bem delineado – provavelmente com uma peça contrastante mas de igual nível – e, sobretudo, com uma orquestra ao vivo, para fazer realçar a obra musical de Stravinski. Ela, que pede sempre uma composição coreográfica em que se  veja o coração, o sangue e os pulmões da própria dança, ao assentar em cima duma partitura que, com mais de um século, se mantém explosiva, monumental e, sobretudo, desafiadora para qualquer coreógrafo ou bailarino.

Published by Antonio Laginha

Autoria e redação

António Laginha, editor e autor da maioria dos textos da RD, escreve como aprendeu antes do pretenso Acordo Ortográfico de 1990, o qual não foi ratificado por todos os países de língua portuguesa.

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