O espectáculo “Ensaio para uma Cartografia” criado – e também interpretado, com mais 16 mulheres – por Mónica Calle, é, seguramente, um trabalho que encerra algumas curiosidades. Está, numa segunda temporada, na pequena Sala Estúdio do Teatro Nacional D. Maria II, onde, regularmente esgotada, tem feito um sucesso considerável.
Desde logo a conhecida actriz (mais a nível nacional quando começou a integrar o elenco de novelas televisivas), fez uma breve apresentação oral – ainda antes de todas tirarem a roupa – em que assinalou que a sua obra teve início em 2014 e que continuará até 2021!
O largo conjunto feminino começou por avançar para cena com dois elementos em mãos, instrumentos de cordas (violinos e violoncelos) e outros tantos pares de sapatilhas de pontas. E o programa informa ser uma peça que partiu de Brecht (“Os Sete Pecados Mortais”) e de “ensaios de orquestra de grandes maestros e dos movimentos do ballet clássico” em que “um grupo de actrizes dança”.
Ora é, justamente, por aí que as coisas nem sempre batem certo.
Sim, ouvimos a voz do carismático maestro norte-americano Leonard Bernstein, a parar e a recomeçar um ensaio de orquestra do “Bolero” (de Maurice Ravel). Quanto a movimentos de dança clássica, nem um. Calle faz as mulheres em uníssono e num triângulo com o vértice quase em cima do público, repetir até à exaustão, um único movimento da barriga para baixo. Nessa tarefa minimal e repetitiva – em que o peso do corpo alterna entre ambos os pés – os braços das mulheres executam apenas dois movimentos, mais relacionáveis com o trabalho de um polícia sinaleiro do que com o de um artista treinado no idioma académico-clássico da dança.
Por tal, não se pode afirmar com alguma propriedade, que se trata de um espectáculo de dança. Já música gravada há muita, mas, como não há texto para as “actrizes” manipularem e exibirem, basicamente o que o espectador pode agarrar, em termos de estrutura, é a própria dramaturgia habilmente gizada por Mónica Calle.
Porém, esta “Cartografia” parece ser manifestamente pobre em ideias. Além do movimento atrás assinalado – que só pode ter sido roubado ao famoso “Bolero” de outro grande Maurice francês, Mr. Béjart – a segunda ideia limita-se a fazer correr (desencontradamente) em cima de umas linhas luminosas horizontais no solo, todas as intérpretes desde a parede escura do fundo do palco até quase tocar os espectadores na primeira linha da plateia. O que não deixa de ser eficaz em termos visuais, bem como o que se lhe segue. Um terceiro grande bloco do “evento performativo”, com forte pendor musical – para além de Ravel ouve-se também na peça Stravinski, brevemente, e Mahler – volta a ancorar-se no “Bolero” com todas as mulheres (sempre nuas) a avançar da mesma parede negra até aos espectadores. Esta última linha, cuja tarefa demora a cumprir longos minutos, é particularmente tocante pois as mulheres vão dando óbvios sinais de cansaço físico e mental. Não tendo treino de bailarinas (e não sabendo “respirar” para aguentar o esforço físico imposto) protagonizam um momento tocante em que, involuntariamente, convocam Oscar Wilde, porque, para o escritor irlandês, “nada faz mais sucesso que o exagero”.
Pelo meio ainda há umas tentativas das mulheres tocarem, em conjunto, os instrumentos que nenhuma domina. E de calçar as citadas sapatilhas de ponta, quando nem fazem ideia como se atam as respectivas fitas. Neste caso, uma a uma, elas vão conquistando o centro do palco e fazendo umas tentativas (algo grotescas e, sobretudo, perigosas para os tornozelos e membros inferiores) de se equilibrar nas pontas dos pés e esbracejar, com alguns esgares à mistura.
Depois de duas horas completamente expostas – a mais corajosa vertente do espectáculo é o facto das mulheres envolvidas numa espécie de maratona aeróbica estarem continuamente desnudadas – recolhem aos camarins exaustas e suadas sem ter aberto a boca! E nos espectadores mais exigentes, provavelmente, ficou em suspenso uma das questões primordiais da Arte da Dança, creditadas à coreógrafa alemã Pina Bausch (1940-2009), artista que também aparece citada no programa: mais importante do que o que se dança é saber o que faz dançar os bailarinos. Ora, na esmagadora maioria das intérpretes da peça, será muito difícil vislumbrar qualquer laivo motivacional na sua performance. O que, para a profissão de actriz, se devia sobrepor a cumprir o mero exercício de uma exigente actividade física em cena. Com mais ou menos emoção.
Posto isto, fica a ideia que “Ensaio para uma Cartografia” poderá, mesmo, ir além de 2021. Basta Mónica Calle substituir as suas intérpretes por um grupo de homens recrutados em qualquer lugar (num ginásio, por exemplo) e tornar masculino aquilo que parece ser o único denominador comum da peça, a diversidade física feminina.
Fotos: Bruno Simão