No dia em que o País comemorou 44 anos sobre a “Revolução de Abril” e no ano em que a Companhia Nacional de Bailado (CNB), faz 41, o seu director artístico, Paulo Ribeiro, num verdadeiro acesso de “patriotismo” – fez um grupo de 70 artistas estrear um septeto de uma coreógrafa alemã, Sasha Waltz.
Aliás, a CNB, com excepção dos seus primeiros anos, sempre primou por apresentar os bailados “errados nos dias certos”, fruto da verdadeira falta de investimento intelectual e partilha comunitária dos seus directores. Nos quais, inusitadamente, se incluíram um holandês e um turco! Estranhamente, a única vertente que ainda parece unir os Portugueses em torno da CNB são os clássicos, ainda que em versões obtusas, indigentes e, quantas vezes, desastradamente adulteradas.
Já para não dizer que, nos últimos anos, o seu reportório atravessou uma fase perigosamente inconsequente e algo populista, fazendo-se crer que a democracia pode levar toda a gente a contribuir com peças para uma companhia estatal – inclusivamente não-coreógrafos – independentemente da qualidade e, mesmo, dos resultados amplamente negativos das obras apresentadas. Até porque quase todas elas foram descartadas após as “premières”, independentemente das substanciais verbas nelas enterradas. Em grande parte vindas da EDP que tem sido um “forçado” mecenas da CNB, que actualmente gasta uma parte muito substantiva dos seus recursos em salários de bailarinos (que nem sequer dançam) e, ao contrário do que devia ser uma companhia, dita nacional, não possui um reportório identificável como tal. Foi nisto que deu a progressiva “politização” de uma companhia que, em última análise, depende em exclusivo do livre arbítrio de um director e dos seus superiores no OPART e Ministério da Cultura. Uma certa “centenização” no grupo poderá ser mau mas pior ainda tem sido a falta de uma Comissão Artística – de indiscutível qualidade e responsabilidade – que retirasse dos ombros de uma única pessoa o ónus das escolhas artísticas e que pugnasse por soluções mais racionais e um reportório minimamente apetecível em Portugal. E, mesmo, no estrangeiro.
Posto isto, centremo-nos em “Impromptus” (improvisos), uma peça cujo eixo é a plasticidade e é acompanhada pela música pianística de Schubert, datada de 1827. Trata-se de uma coreografia de 2004, que Waltz criou em Berlim para a sua companhia – em que dança a portuguesa Cláudia Serpa Soares, que ajudou na remontagem em Lisboa – e que, curiosamente, não podia estar mais nos antípodas de uma obra com algum fervor “nacionalista” ou, mesmo, “elevação patriótica”. E cujo conteúdo é algo morno partindo de propositados “silêncios” e supostos “estados de alma” que “oscilam entre a leveza e o desequilíbrio” (sic).
Ainda que tivesse sido dançada para um público que esteve longe de encher o Teatro Camões e, basicamente, por corifeus e artistas do corpo de baile – com 63 colegas bailarinos potencialmente sentados na plateia – este trabalho com pouco mais de uma hora revelou algumas qualidades que importa referir. Trata-se de uma peça coreograficamente muito bem trabalhada, com música ao vivo – a pianista luso-americana Jill Lawson deu excelente réplica aos bailarinos – com inteligente manipulação de materiais de aspecto simples e pouco sofisticado e, sobretudo, interpretada com foco, brio e, mesmo, um certo “jogo de cintura”.
Sobre duas plataformas brancas gigantes e inclinadas e tendo por fundo um losango castanho suspenso, os artistas foram surgindo em cena agrupando-se em duetos trios e quartetos, entrando e saindo de cena, e criando algum tipo de cúmplice secretismo em curtos encontros de carácter algo fortuito. Os seus trajes, ao mesmo tempo discretos e atractivos, são soltos e curtos em tons de castanhos, preto, cinza e branco, com cortes e tecidos diferentes.
O primeiro momento de verdadeiro encantamento foi o delicado dueto de Inês Ferrer e João Pedro Costa. A serenidade, descomprometimento e partilha de ambos revelou-se de uma rara beleza e gerou momentos evanescentes e quase oníricos. O delicado trabalho de ambos situou-se entre o desequilíbrio e a confiança mútua, marcado pela subtileza e alguma vulnerabilidade.
Um dueto masculino protagonizado por Gonçalo Andrade e Miguel Ramalho, em que um suporta e manipula o corpo do outro, também prendeu, por razões distintas, o olhar do espectador. Corridas (para a frente e a recuar), saltos rasteiros ou de maior amplitude – inclusivamente entre as plataformas desniveladas – e corpos que se abraçam ou rejeitam desmultiplicaram-se em conjuntos mais ou menos interessantes, a que a soprano Sara Braga Simões, emprestou a sua expressiva voz em quatro canções com o piano em fundo. Contudo, a música, por vezes ultra romântica, jamais encontrou no movimento qualquer tipo de sentimentalismo ou uma utilização óbvia do mesmo. Antes pelo contrário, os artistas sentem-se soltos e livres para se desligar da música, sem, no entanto, perder uma certa ligação entre si. E sem nunca imprimir qualquer laivo de erotismo numas fugazes relações que, inclusivamente, parecem falsamente íntimas.
Waltz encontrou soluções curiosas e, até, engenhosas brincando com um lado mais formal das partituras. A determinada altura, após os artistas terem riscado furiosamente o solo (em silêncio, para se ouvir melhor o som do giz) trouxeram para palco botas de borracha, que, inusitadamente, calçaram e, depois, usaram como recipientes para água. Líquido que acabaram por utilizar para fazer escorrer a tinta em pó que, previamente, espalharam no palco e, com a qual, propositadamente, se sujaram. Depois disso, três mulheres desnudaram-se e foram ao banho, dentro de um recipiente em que outra água límpida e libertadora saltou pelo ar. O mesmo encontrava-se escondido, algures na parte de trás do palco, onde as raparigas desapareceram envoltas em toalhas brancas. Antes disso o palco fora dominado por mais um (intrincado) dueto interpretado com maturidade, envolvimento e uma espécie de humor subterrâneo, pelos marcantes Miguel Ramalho e Henriett Ventura. Dois bailarinos que sempre brilham em peças de cariz contemporâneo.
A obra (que também contou com Marta Sobreira no elenco) terminou, inesperadamente, quando um forte ponto luminoso dirigido para a plateia no canto superior direito do palco, se apagou no epílogo de mais um laborioso dueto muito bem defendido por Gonçalo Andrade e Inês Moura. Ambos imprimiram forte personalidade e desenvoltura ao movimento, mostraram uma boa química e cumplicidade, deixando o público algo em suspenso ao fechar-se o pano sobre o evento.
E assim se resolveu uma dança em que muito pouco ou nada viveu do “improviso”, com um visível toque “feminino” mas, que, em termos de reportório, certamente está longe de acrescentar alguns “condimentos” (ou emoção) à dança dita Portuguesa.
Fotos: Bruno Simão