Dentro de um espectro de coreógrafos que trabalham com amadores e profissionais nas mesmas obras, Paulo Ribeiro escolheu Tânia Carvalho – que faz 20 anos de carreira – para o seu programa de estreia na Companhia Nacional de Bailado (CNB). Prosseguindo, assim, e sem grandes dúvidas, o caminho algo errático da sua antecessora.
Se a ideia era comemorar uma efeméride que representasse alguma coisa para o cidadão português, em geral, e os amantes da dança em particular, Ribeiro perdeu logo a sua melhor oportunidade pois, no início de 2018, fez, exactamente, um século que os notáveis artistas dos Ballets Russes (1909-1929) estavam em Portugal.
Provavelmente os públicos e os palcos dos lisboetas teatros Maria Matos e São Luiz, onde foram apresentadas recentemente várias obras de Tânia, serão apropriados para tal “benesse”, já os bailarinos da CNB – com o mérito que lhes assiste -, levantam muitas dúvidas.
E a verdade é que o público lisboeta mostrou o seu “interesse” pelos 20 anos coreográficos da bailarina, nem, sequer, enchendo um quinto da sala (média) do Teatro Camões. E nos espectáculos seguintes ainda foi pior!
Mas numa estranha época em que qualquer pessoa que nunca estudou dança faz conferências sobre o tema, qualquer aprendiz de bailarino dá masterclasses de coreografia e qualquer curioso realiza filmes de dança, provavelmente tudo se adequa num universo que parece viver alegremente numa ingénua convivência com a mediocridade. E, perigosamente, com a política!
A soirée abriu com um dueto, com movimentos “robóticos” em que, de um modo geral, os artistas de cara pintada de branco, mexiam os braços com uma calculada rapidez, muito superior à das pernas e quase sempre atrás de um rectângulo luminoso no dead centre, lugar neutro do palco. Por vezes as luzes fechavam-se e os artistas apareciam no solo, voltando, ciclicamente, ao seu lugar de acção. Vestidos com malhas completas, ela (Irina Oliveira) de côr escura e ele (Lourenço Ferreira) de côr clara, começaram por se esconder atrás um do outro, indo alternado de lugar ao longo da peça, alimentada com uns “ruídos” algo perfurantes da autoria de Diogo Alvim. Sem qualquer cenário, a obra pareceu árida e longa, com um vocabulário tão pobre como repetitivo, ainda que interpretada com particular rigor por dois dos mais talentosos artistas da companhia. Provavelmente, depois de lhes anular – por via da “máscara” – qualquer hipótese de expressão visual, a coreógrafa pediu-lhes apenas que seguissem um roteiro de movimento, seco, mecânico e desprovido de emoção. A este tipo de imposição não há mistério nem criatividade interpretativa que resista, nem caligrafia que enalteça o artista.
Curiosamente o trabalho tem por título “Olhos caídos”, uma (involuntária) metáfora para o estado em que o dueto terá deixado a maioria dos espectadores.
Seguiu-se “S”, uma coreografia que mereceu toda uma orquestra que, no fosso, tocou com desenvoltura outra obra de Alvim. Enquanto no palco parecia que se iam desenrolando três narrativas desencontradas.
Sendo uma criação para a CNB – e que se crê que será mais uma que irá directamante para o fundo baú do esquecimento – a coreógrafa, por deslumbre ou puro desconhecimento dos meandros da dança académico-clássica, utilizou as bailarinas com sapatilhas de pontas, como matéria meramente decorativa. Dividindo o bailado em quatro partes, uma vez mais, Tânia Carvalho não conseguiu ir além de banalidades e encadeamentos de frases de movimento pouco expressivos. Primeiro, com três bailarinas vestidas de tutu romântico, fazendo – sem que nada o justificasse – “pas de bourrées” para lá, para cá e para lado nenhum, com os braços cruzados sobre o peito ou as mãos sobre os olhos… Depois, com mais seis bailarinas de malhas pretas fazendo umas linhas “decoradas” com voltas e poses, sem que tivesse resultado em qualquer composição minimamente interessante do pondo de vista visual. Seguidamente, cinco rapazes de túnicas “românticas” verdes com mangas-de-balão, que entre poses e umas linhas de movimento em uníssono ou em contraponto, pareciam saídos de um sarau de escola de “ballet” de província. E, finalmente, a juntar a esse incongruente desfile surgiu um par de preto – a que é permitido um assomo de virtuosismo, ainda que inconsequente – teceu uma espécie de dueto que parecia pretender aglutinar todos os intérpretes, dando alguma credibilidade e coesão ao inusitado conjunto.
Em resumo, o decoro e as boas (e insípidas) maneiras com que os bailarinos interpretam “S” indiciam, uma vez mais, um enorme défice de imaginação e, até, de conhecimento da história e evolução da dança a nível mundial. Tudo parece uma sequência pouco entusiasmante de imagens mal ligadas entre si por movimento desgarrado muito pouco trabalhado.
Este “tiro no pé”, de Paulo Ribeiro, teve como resultados práticos uma situação raramente vista na CNB: alguma pateada nos espectáculos.
De um modo geral, a falta de substância, “métier” e linguagem faz com que as peças de Tânia Carvalho, invariavelmente, morram na memória do espectador assim que ele cruza a porta do teatro. E por isso, utilizar bailarinos profissionais e com o gabarito dos da CNB, resulta num manifesto desperdício a que uma companhia nacional não pode nem se deve expor! Por, seguramente, não ser esse o seu papel na nossa sociedade e, muito menos, na cultura portuguesa.
Fotos: Bruno Simão