Ir a Viena e não ir à Ópera – e, já agora, ao “bairro” dos museus com as suas magníficas exposições e colecções de valor incalculável e aos monumentais palácios – é, por assim dizer, uma verdadeira heresia. Ainda que seja por falta de meios (os bilhetes são particularmente caros) ou porque, apesar da vetusta casa ter ópera e bailado quase todos os dias do ano, a opulenta sala esgota com muita facilidade. Mas vale bem o esforço, nem que seja uma vez na vida!
Comparado, em termos de “social” entre os espectadores, ao Palais Garnier, ao Teatro alla Scala, ao MET, ao Covent Garden ou ao Teatro Maryinski, o imponente edifício da capital austríaca, que foi semi-destruído em Março de 45 (durante a segunda Grande Guerra), mantém um particular “glamour” na actividade que se desenrola nas suas galerias originais. Embora a sala, propriamente dita, não tenha a beleza de um teatro mais “italiano” como é, por exemplo, o caso do Teatro Nacional de São Carlos, de Lisboa.
Apesar do canto e da música, com a espantosa Filarmónica de Viena, congregarem os melhores artistas do mundo, a companhia de dança da Wiener Staatsoper é um conjunto de grande nível artístico e técnico, de carácter mais “tradicionalista” e que, naturalmente, reflete a enorme qualidade da sólida e vibrante estrutura em que está inserida.
No quinto dia do mês de Maio de 2018, a companhia dirigida pelo francês Manuel Legris (que em 87 dançou no São Carlos o papel de Siegfried, no Lago dos Cisnes, ao lado de Sylvie Guillem a convite da Companhia Nacional de Bailado) apresentou um programa “norte-americano” dançado por um grupo constituído por artistas dos mais diversos países. Incluindo Portugal. Representado pelo jovem Leonardo Basílio que, tanto quanto se sabe, é o primeiro bailarino português a integrar o elenco do grupo de bailado da primeira ópera austríaca, na qualidade de “meio solista”.
A “soirée” começou com duas obras mais ou menos abstractas e bem significativas do reportório do russo-americano George Balanchine (1904-1983), depois veio uma peça sem história de John Neumeier (nascido em 1942 no estado do Wisconsin, EUA) e um trabalho engenhoso e subtilmente cómico do novaiorquino Jerome Robbins (1918-1998).
“Stravinski Violin Concerto” é uma peça com movimentos angulosos, vestida a preto e branco, que segue a partitura (igualmente inventiva) de Igor Stravinski. Abre com uma “tocatta”, seguem-se duas árias – que servem de suporte a dois duetos – e termina com um “capriccio”. Os papéis principais foram bem desempenhados pelas bailarinas Olga Esina e Nina Poláková e pelos bailarinos Roman Lazik e Masayu Kimoto.
O espectáculo prosseguiu com uma das obras mais conhecidade de Balanchine, a luminosa “Tema e Variações”, para a música homónima de Tchaikovski. Trata-se de uma das mais dançadas e brilhantes peças do mestre do “neo-classicismo”, ao mesmo tempo com um charme discreto e um particular virtuosismo, tanto no trabalho dos solistas como no do corpo de baile. A russa Liudmila Konovalova e o ucraniano Denys Cherevychko, desempenharam com brio e verve os papéis originalmente criados, em 1947, por Alicia Alonso e Igor Youskevitch e os requintados figurinos de Christian Lacroix substituíram os originais de Karinska.
De um modo geral a companhia mostrou um excelente domínio técnico e virtuosismo, se bem que lhes faltou um pouco de ataque no intrincado da coreografia e aquela “nonchalance” tão peculiar nos bailarinos no New York City Ballet.
A peça menos interessante da noite foi, seguramente, “Bach Suite III” assinada pelo director do Ballet de Hamburgo (Alemanha), John Neumeier, que criou um trabalho morno e sem vibração, para a música de Bach. Com dois casais principais e mais três secundários – sendo um dos bailarinos Leonardo Basílio – a obra revelou-se bastante plástica e musical mas com um léxico coreográfico bastante enfeudado aos cânones académico-clássicos. E em que a orquestra (muito mais que um par de excelentes bailarinos, a delicada Olga Esina e o talentoso jovem vianense Jakob Feyferlik) com uma sonoridade exemplar fez elevar os espíritos ao som da conhecida “Aria sulla quarta corda” mostrando que a beleza é eterna, mas, quando a dança não nos espanta pode-se sempre fechar os olhos. Como, aliás, dizia (ironicamente) Balanchine.
De Jerry Robbins (1918-1998), um dos mais inventivos e admirados coreógrafos norte-americanos do século XX, apresentou-se, no epílogo, um bailado que dá pelo nome de “O Concerto” e que começa com uma “charge” com o próprio pianista em palco. De seguida, os bailarinos vão chegando, a pouco e pouco, para assistir a um concerto de piano em que acontece toda a espécie de peripécias e, no final, todos se transformam em borboletas dançantes. Sonhos e fantasias povoam a cabeça de duas dezenas de personagens ao som da música de Chopin que sai do piano e, alternadamente, do fosso de orquestra. Um dos pontos altos da obra é uma “pas-de-six” feminino cómico em que uma das bailarinas que parece sonhar enquanto dança, é frequentemente, chamada à ordem e ao desenho coreográfico, pelas colegas.
E com grande entusiasmo na plateia (e muito decoro no palco) desceu o pano sobre uma noite de muita e boa dança que apenas precisava de alguma coisa que tivesse feito estremecer a selecta audiência do Wiener Staatsballett. Que, após o evento, se pode dar ao luxo de espalhar-se pelos requintados cafés da área ou mostrar noutros lugares o charme discreto do público vienense e estrangeiro que frequenta uma das mais carismáticas casas de espectáculos do mundo.
Créditos fotográficos: Wiener Staatsballett / Ashley Taylor