No Verão de 2014 o Quorum Ballet estreou no festival Cistermúsica, em Alcobaça, a peça 30.000 Vidas | Aristides – com coreografia do seu director e coreógrafo residente, Daniel Cardoso – em homenagem ao conhecido “cônsul de Bordéus”. Dois dias a seguir ao Dia Internacional em Memória da Vítimas do Holocausto (27 de Janeiro) de 2022, a obra foi resposta nos Recreios da Amadora, para um espectáculo único. A data, sob o lema “memória, dignidade e justiça”, marcou em todo o mundo o 77º aniversário da libertação dos encarcerados do sinistro campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau.
O título do bailado, desde logo, remete-nos para um facto que é algo indeterminado mas, tendo sido, trinta, vinte ou, mesmo, dez mil almas salvas pelo corajoso diplomata português em França, o seu heroísmo fez com que fosse considerado em Israel, no ano de 1966, “Justo entre as Nações” e esteja representado no Yad Vashem (Memorial do Holocausto) em Jerusalém, ao lado de nomes tão sonantes como Oskar Schindler.
Aristides de Sousa Mendes (1885-1954) cujos restos mortais foram trasladados para o Panteão Nacional em Outubro de 2021, é um herói português particularmente estimado porque, ao contrário de muitos outros, em nome da fé e das conquista territoriais e políticas, assassinaram milhares e milhares de seres humanos. O nosso “cônsul insubordinado”, de Cabanas de Viriato, não olhou a sexo, raça, credo ou nacionalidade e, arriscando a sua carreira e a própria vida, salvou todos os que pôde no longínquo ano de 1940, em plena Segunda Guerra Mundial quando o ditador Salazar fez emitir a perversa “circular nº 14″, proibindo os diplomatas portugueses de dar “protecção” a judeus, russos e apátridas.
Por isso nunca será demais lembrar aquele que, no silêncio da sua consciência, assinou salvos-conduto para pessoas que nem conhecia sabendo que as estava a poupar a uma morte mais que certa. Até aos dias de hoje o seu exemplo de vida que, de um modo muito incisivo, representa a bondade do povo português pelo Mundo fora, já fora tema de peças de teatro, filmes, séries televisivas e outros objectos performativos mas, que se saiba, nunca tinha servido de inspiração à Dança.
O primeiro dado que salta à vista de 30.000 Vidas | Aristides, ainda antes do bailado começar, é um repetido cair de folhas de papel da teia do teatro num espaço nu e escuro em que sobressaem, do lado direito, cinco barras verticais de néon. Exactamente mesmo número de bailarinos que começam desnudados no palco e se levantam lentamente para vestirem fatos negros e camisas brancas com gravatas negras. As primeiras formações na peça são linhas que os intérpretes vão constituindo e desfazendo protagonizando simbologias ocultas e mostrando, até, um lado algo militar de um grupo que se desmultiplica em solos, duetos e conjuntos num ambiente sempre pesado e, por vezes, algo agressivo.
A energia que Upock Qaucavan, Margarida Carvalho, Inês Godinho, Beatriz Graterol e Fernando Queiroz, colocaram numa dança cuja forma é quase sempre límpida mas cujo conteúdo é bastante abstracto, foi notável. Pelo que, toda a peça que se desenrola num clima de tensão e de enorme exigência física, levou os espectadores a um exercício de reflexão e alguma perplexidade. Toda a dança, que praticamente não tem tempos mortos, é muito bem suportada pela série de obras musicais escolhidas, sobretudo a poderosa música do Kornos Quartet, ilustrando momentos coreográficos que evocam um certo desespero e, mesmo, alguma frustração e muita resiliência nos corpos dos artistas. Já mais no final do bailado surge um casal vestido com trajes de rua que executa uma dança em que o seu continuado tremor e a persistente curvatura dos corpos leva a pensar que representa o ser humano, resignadamente, a claudicar perante o poder ou algumas forças malignas a ele associado.
Na verdade, a obra de Daniel Cardoso parece ser, desde logo, bastante metafórica o que a torna algo hermética e desligada de factos cronológicos ou de um conjunto sequencial de narrativas claras e objectivas sobre a temática em cima do palco. A única alusão, mesmo, à mão de um Aristides que assinou milhares de documentos providenciais e salvadores, são as centenas folhas de papel que vão caindo ao longo de todo o bailado e deixam o chão pejado e perigosamente escorregadio para se dançar com tanta garra e foco numa mensagem que se insiste em fazer passar.
Tudo o mais, porém, parece circunscrever-se a uma espécie de diálogo surdo entre seres humanos sofredores e outros inexoravelmente dominadores, num espécie de agonia que vai muito para além das sombras e da memória de um espectáculo em que nas entrelinhas parece sugerir o pavor da própria morte.
AL