LUTO NA DANÇA PORTUGUESA: JORGE GARCIA (1935-2021)

LUTO NA DANÇA PORTUGUESA: JORGE GARCIA (1935-2021)
 
Faleceu em Lisboa, no Hospital de S. Maria, no dia 8 de Agosto de 2021, pelas 21h00, o mestre de bailado internacional de origem cubana e “professor emérito” da Escola Artística de Dança do Conservatório Nacional, Jorge Garcia.
Considerado por muitos o mais importante professor de bailado clássico em Portugal no último quartel do século XX, foi o primeiro pedagogo no extinto Ballet Gulbenkian (que em Maio fez 60 anos que foi fundado na cidade de Lisboa) a acabar com a hegemonia do ensino do estilo “inglês” naquela companhia. Contratado por Milko Sparemblek, o Mestre Garcia deu um novo impulso à preparação técnica do grupo da Gulbenkian, ao mesmo tempo que também ensinou jovens artistas nos cursos de preparação profissional da Fundação Calouste Gulbenkian.
Guardião do mais puro estilo clássico – que estudou na sua Cuba natal – remontou várias obras de reportório em inúmeras companhias europeias e norte-americanas. Recebeu ensinamentos de vários mestres russos, a nível pedagógico, e o conhecimento dos grandes clássicos por via de Mary Skeaping (1902-1984) e, também, de Alicia Alonso (1920-2019).
Como coreógrafo o seu trabalho nunca atingiu o patamar artístico e a excelência pela qual ficou conhecido no ensino da dança. Contudo, a sua obra Majísimo – que coreografou no início da carreira em Havana para o Ballet Nacional de Cuba -, continua a ser dançada até hoje no seu país de origem e a ser exportada pela companhia que, desde logo, se apoderou dos próprios direitos autorais.
Trabalhou intermitentemente em Lisboa nos últimos 50 anos, tendo feito base da sua casa lisboeta para estadias mais ou menos prolongadas em várias companhias europeias e norte-americanas. Nos anos 90 começou a leccionar regularmente no Conservatório Nacional tendo sido responsável pela formação em dança clássica de um grupo bastante alargado de jovens profissionais que, posteriormente, integraram diversas companhias de dança nacionais e estrangeiras, designadamente, a Companhia Nacional de Bailado. Nessa companhia remontou os bailados Giselle e La Fille mal gardée.
Ao longo da sua carreira trabalhou com alguns artistas famosos como Rudolfo Nureyev, Rosella Hightower, Noella Pontois, Cyril Atanassoff, Dominique Kalfouni, José Manuel Carreño, Richard Cragun e Natalia Makarova, entre outros.
 
Bailarino de nacionalidade francesa e antigo professor e coreógrafo do Ballet Gulbenkian e da Companhia Nacional de Bailado e director artístico do Ballet do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, nasceu em Guáimaro, na província de Camagüey, em Cuba, a 19 de Dezembro de 1935.
Quando tinha apenas sete anos, Jorge Fausto Garcia Garcia, ficou órfão de mãe, Candida Garcia, que faleceu vítima de febre tifoide. O pai, Juan Garcia, que viajava muito pelo país por ser sindicalista de profissão, passado algum tempo voltou a casar-se. Porém, poucos anos depois viria a morrer, de ataque cardíaco, quando o filho tinha pouco mais de 10 anos.
A partir daí, Jorge, foi viver com uma irmã do pai que tinha dois filhos com uma idade parecida com a sua. Apesar do rude golpe que foi a perda dos progenitores, Jorge era uma criança traquina, aventureira e feliz tendo-se, segundo ele, adaptado bem à nova vida junto dos primos e tios. Estes asseguraram-lhe uma educação religiosa, cuidada e diversificada, em colégios católicos e uma infância divertida em que partilhava os fins-de-semana com os primos e amigos.
Os tios, que eram pessoas ligadas às artes e tinham poder económico, levavam-no a passar férias na estância balnear de Cienfuegos, cidade onde havia muita actividade cultural. Todavia, Jorge, só viu a primeira vez um espectáculo de ópera, La Traviatta, mais tarde em Camagüey. E ficou para sempre apaixonado por esse tipo de manifestação artística.
O seu primeiro contacto com as artes foi através da música, pois estudou piano com a professora da prima que se deslocava à casa da família para leccionar em privado. Depois, já no colégio onde estudava, fez-se notar pelas suas qualidades vocais, o que lhe conferiu um estatuto muito particular entre os colegas. Quando tinha 14 anos, integrado num grupo escolar da cidade de Camagüey, foi a Havana cantar, como solista, a Missa da Coroação (de Mozart) que foi gravada para a Radio Cultura.
Mais tarde mudou-se para a casa de outra tia (irmã da mãe) que vivia na capital da ilha, para habitar com a família desta. No final da adolescência passou, assim, a ter uma forte ligação a um primo, José, e uma prima, Ada, que eram mais velhos que ele. Com ela, que mais tarde emigrou e acabou por morrer nos Estados Unidos da América, na Florida, manteve uma relação próxima durante toda a vida. Assim como com a sua filha, Beatriz, residente na cidade de Weston, pertencente ao estado da Florida, e que foi o último familiar com quem manteve contacto regular ao longo dos anos.
Foi já em Havana que, casualmente, tomou contacto com a dança através da Sociedade Pro Arte Musical, de Alicia e Alberto Alonso, por influência de um amigo que nela estudava. Só começou, verdadeiramente, a estudar bailado clássico com cerca de 19 anos, na Academia de Ballet Alicia Alonso, com o professor José Parés. E, posteriormente, com outros professores em privado também em Havana, designadamente Anna Leontieva, uma professora russa emigrada em Cuba e que nos anos 40 pertencera ao Original Ballet Russe. A tradição da dança clássica em Cuba deve-se ao facto da ilha, então, estar na rota de passagem das companhias que dos Estados Unidos da América se dirigiam para a América do Sul. De todos os seus professores a ballerina Menia Martinez (n. 1938) com quem começou a trabalhar aos 24 anos, foi a sua principal mentora. Martinez era uma bailarina cubana, filha de pais comunistas, e a primeira que fora estudar para a Rússia, para o Ballet Kirov, de São Petersburgo e o Ballet Bolchoi de Moscovo. Foi colega e amiga íntima de Rodolfo Nureyev, em São Petersburgo e dançou com as duas maiores companhias da URSS, o Kirov e o Bolchoi. Quando regressou a Cuba, não só continuou a cantar e a dançar – coisa que já fazia na Rússia – em teatro musical, como leccionava na capital cubana. Sendo particularmente dotada para o ensino da dança masculina, não só deu aulas de técnica de dança clássica mas também ensinou a pedagogia segundo o método russo a Jorge que foi um dos seus principais alunos e deveu a sua sólida formação ao empenho que Menia demonstrou na sua preparação técnica e formação artística.
Em 1961, com 26 anos, ingressou no corpo de baile do Ballet Nacional de Cuba. A companhia fundada em 1948 com o nome de Ballet Alicia Alonso que, dois anos depois, se transformou na Academia de Ballet Alicia Alonso e, em 1956, na companhia com o nome com que ficou conhecida em todo o mundo.
Desses tempos, Jorge Garcia ficou com a ideia de que a controversa (politicamente falando) Alicia era uma inspiração para todos, pois era o que se pode chamar uma força da Natureza, que se dedicava à dança com um sentido quase religioso, como se fosse uma freira. Era uma bailarina com características muito particulares e “completamente americana” de formação – estudara e dançara nos EUA antes de regressar ao seu país natal – e dançava com uma energia muito particular e um sentido estilístico único. 
Ainda no Ballet Nacional de Cuba estudou também com os mestres Victor Ivanovitch Zaplin, do Ballet Bolshoi, e Olga Krylova e Vladimir Gurov, ambos do Teatro Kirov (actualmente Teatro Maryinski, de São Petersburgo). Dois anos depois foi promovido a solista. Em 1964 coreografou, a pedido de Fernando Alonso, Majísimo (com música da ópera El Cid, de Jules Massenet), o seu primeiro bailado para a companhia e o qual ficou no reportório desde então. Nos papéis principais estiveram Josefina Mendez e Lorenzo Monreal – bailarino então casado com Laura Alonso, filha de Alicia – e grande amigo de Jorge. No ano seguinte criou Amazónia (de Reingold Glière) e mais alguns bailados para óperas.
Em 1966, com 31 anos, e quando a sua posição dentro da companhia se estava a consolidar, abandonou o Ballet de Cuba, em Paris. Juntamente com mais nove bailarinos – entre os quais se contavam Júlio Medina e Óscar Gonzalez, que posteriormente fizeram parte do elenco do Ballet Gulbenkian nos anos 70 – durante uma digressão a França, pedindo asilo político e obtendo então o passaporte francês. As razões invocadas para tal decisão (que fez com que deixasse o seu país apenas com uma mala com roupa e um álbum de fotografias) foram a falta de condições de vida “decentes” a todos os níveis e, sobretudo, a perseguição que a direcção da companhia levava a cabo aos artistas que, segundo os cânones da revolução cubana apresentavam um comportamento sexual desviante. Ora o jovem artista, que nunca tinha saído do país, “discordava da injustiça e dos processos sancionatórios pesados a que eram sujeitos os elementos da companhia que não eram casados oficialmente, pois aos outros, a coberto de uma situação legal, era-lhes permitido uma vida sexual muito mais tranquila e livre.”
Nos primeiros tempos em França, Jorge dançou em vários grupos, designadamente em um pequeno conjunto de dança espanhola.
Posteriormente foi artista convidado nas Óperas de Lyon e de Rouen. Na temporada de 67/68 foi contratado como bailarino principal da Ópera de Marselha, sob a direcção de Joseph Lazzinni e na de 68/69, por Vittorio Biaggi para a Ópera de Lyon, onde criou um pas-de-deux com música de Minkus (Paquita). Seguidamente trabalhou na Ópera de Valónia como bailarino principal, mestre-de-bailado e coreógrafo. Aí produziu uma dança para a ópera Fausto (A Noite de Walpurgis, de Charles Gounod), Sinfonia nº 39 (Mozart) e Tanagras (Bernier), e remontou As Sílfides e A Bela Adormecida.
Foi mestre de bailado do Ballet do Teatro La Fenice na temporada de 70/71. Na de 71/72 voltou a Marselha, a convite de Rosella Hightower, para o Nouveau Ballet de Marseille, como mestre-de-bailado e coreógrafo, tendo assistido Rudolfo Nureyev, nos ensaios de D. Quixote, e criado alguns divertissements, para óperas.
Em Janeiro de 1972 foi contratado por Milko Sparemblek como professor do Grupo Gulbenkian de Bailado, com o qual se deslocou em digressão ao Brasil. Para a companhia de Lisboa coreografou Três Movimentos (Stravinsky), em 1973, Duo (Benedetto Marcello), em 1974, e Variações Sinfónicas (César Franck). Em 1975 remontou Majísimo (Massenet) e o Grand Pas de Quatre (Cesare Pugni). Em 1973 remontou uma segunda versão de Giselle, para o Grupo Gulbenkian de Bailado, com Isabel Santa Rosa e Armando Jorge nos papéis principais. Posteriormente recriou a mesma obra no Ballet do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, o Ballet National de Marselha (sob a direcção de Roland Petit) e a Companhia Nacional de Bailado (1987). Entre 75 e 77, fez parte de uma comissão artística (com Isabel Santa Rosa, Carlos Trincheiras, Armando Jorge e Ger Thomas) que dirigiu o Ballet Gulbenkian.
Em 1976 foi convidado pela Fundação de Teatros do Rio de Janeiro para reorganizar e dirigir o Ballet do Teatro Municipal, onde permaneceu até Maio de 1979, tendo recriado nessa companhia o Lago dos Cisnes, Giselle (com cenografia de Artur Casais), Paquita, o Grand Pas de Quatre e Variações Sinfónicas.
Como Professor Convidado leccionou cursos no Banff Center (Canadá), no Festival Internazionale della Danza (Veneza – Itália) e no Festival Internazionale del Balleto (Nervi – Itália) e nos Cursos Internacionais de Dança da Madeira (Funchal – Portugal).
Em 1979 foi ainda professor convidado dos Ballets de Nancy e Marselha, do Ballet do Teatro alla Scala, de Miläo, do Ballet Real do Winnipeg, do Boston Ballet – duas temporadas – do Atterballetto e do Balleto di Toscana. Nos anos 80 voltou a leccionar em Portugal, no Ballet Gulbenkian e na Companhia Nacional de Bailado. 
A partir de 1991 foi professor principal convidado da Escola de Dança do Conservatório Nacional de Lisboa, para cujos alunos remontou uma versão completa de La Fille Mal Gardée, em 1994, que seria também dançada, posteriormente, na Companhia Nacional de Bailado.
Jubilou-se em 2009, tendo continuado a trabalhar como professor convidado de artistas de renome mundial e de várias companhias de nomeada, designadamente a Companhia Nacional de Bailado, de Lisboa, o Ballet da Ópera, de Lyon, os Ballets de Monte-Carlo e o Alvin Ailey American Dance Theatre, aquando da sua digressão a Paris em 2012.
Para o espectáculo de despedida do bailarino-estrela cubano José Manuel Carreño, no American Ballet Theatre, a 30 de Junho de 2011, Jorge Garcia remontou o seu bailado Majísimo para um grupo de bailarinos cubanos.
No Dia Mundial da Dança (29 de Abril) de 2018 a Escola Artística de Dança do Conservatório Nacional fez-lhe uma homenagem pública tenho, na mesma altura, dado o seu nome ao maior estúdio de dança do velho edifício da Rua dos Caetanos em Lisboa. Conhecido como um pedagogo de referência no Ballet Gulbenkian e professor emérito da Escola Artística de Dança juntaram-se ao antigo bailarino e também coreógrafo, muitos artistas que foram seus discípulos, alguns professores da citada instituição e amigos de longa data.
Sobreviveram-lhe os primos Beatriz e Fernando, residentes nos Estados Unidos da América, e outros familiares mais afastados em Cuba.
   
                                                                                                       António Laginha
Rudolfo Nureyev, desconhecido, Rosella Hightower e Jorge Garcia

Published by Antonio Laginha

Autoria e redação

António Laginha, editor e autor da maioria dos textos da RD, escreve como aprendeu antes do pretenso Acordo Ortográfico de 1990, o qual não foi ratificado por todos os países de língua portuguesa.

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