Ainda antes da sua exibição comercial em Portugal – cuja data se desconhece – o festival de cinema Queer 2018, apresentou numa sessão única no Cinema São Jorge em Lisboa, a notável e perturbante película belga Girl (Rapariga), dirigida por Lukas Dhont.
Com argumento de Dhont e Angelo Tijssens, foi exibida na seção Un Certain Regard no último Festival de Cannes de 2018, tendo ganho o prémio Caméra d’Or, de melhor primeira longa no festival, assim como o de Melhor Actor e prémio Queer.
O filme, que é falado em três idiomas, é uma produção belgo-neerlandesa e protagonizado por uma bela rapariga loira (de 15 anos) que pretende ser bailarina mas cujo grande drama – além da aprendizagem da dança clássica que quase se torna num caso menor – é ter-se chamado… Victor!
Lara surge como uma personagem intrigante e que é bastante obstinada. Sobretudo dentro do estúdio de dança de uma escola em que entra à experiência, e que quer ser “apenas” uma rapariga como todas as suas colegas. E não um “exemplo” de persistência, coragem, disciplina e tenacidade. Apesar do apoio do dedicado e amoroso pai – um taxista que se muda com os dois filhos para uma grande cidade, a fim de facilitar o processo de transformação do mais velho, e de uma equipa médica (cirurgiã e psicólogo) dedicada e meticulosa, a coisas não são nada fáceis para Lara nem no dia-a-dia nem, muito menos, na escola de dança.
O filme retrata com inegável veracidade o exigente trabalho de um adolescente que pretende ser profissional da dança. E, toda uma série de problemas complementares quando se trata de um rapaz em processo de transformação em rapariga.
Uma das maiores qualidades do filme, para além do sensível e pertinente tema que aborda e da interpretação exemplar de Victor Polster (Lara) é ser 100% credível ao longo dos seus 105 minutos.
Não é a primeira vez que homens interpretam papéis femininos de um modo magistral (podemos citar exe, Jaye Davidson, em The Criyng Game – Jogo de Lágrimas – de 1992) mas em Girl, colocou-se – para realizador e intérprete – um problema de maior complexidade, já que se trata de retratar um processo de transexualidade em evolução.
O pai, sempre presente, compreensivo, amoroso, paciente e dedicado – muito bem interpretado pelo actor Arieh Worthalter – faz tudo ao seu alcance para levar a bom porto o resultado de um espinhoso tratamento hormonal a que o filho se submete antes da planeada cirurgia de transformação sexual. O que ele não consegue é apaziguar os seus fantasmas nem os de Lara, cujo sofrimento é ignorado pelas colegas que a vêem apenas como alguém que não se despe num camarim para tomar banho após as aulas.
Os professores de dança – com alguma benevolência – tentam fazer de Lara uma bailarina, ainda que os seus pés sangrem e o seu corpo não obedeça à sua vontade férrea. Ainda assim, os obstáculos que se deparam à jovem são mais de ordem pessoal do que externa, por isso o trabalho de Dhont mostra uma filigrana de sentimentos interpretada de um modo absolutamente denso, autêntico e comovente. Em que os silêncios, por vezes, são muito mais eloquentes que a própria fala e a linguagem corporal bastante elucidativa, no que toca as seus medos e frustrações.
Enquanto a sua médica lhe sugere que não se fixe demasiado na sua aparência – coisa impossível num artista-bailarino – Lara batalha contra uma maquiavélica evidência, o controle que o espelho e os mestres exercem sobre a própria imagem do aspirante a artista da dança. Na maioria dos casos o bailarino tem, mesmo que aprender, a respeitar o corpo – e a fazer os seus colegas respeitar a sua intimidade, sem actos de intimação ou crueldade física e psicológica.
Para dificultar ainda mais a existência do martirizado rapaz, a sua iniciação sexual acontece com um rapaz do prédio em que habita e é fugaz e conturbada, tornando a sua situação mental ainda mais insustentável para o confuso adolescente.
Com uma serenidade fora do vulgar para uma rapariga de 15 anos – a idade real de Polster – Lara, para além de esconder os genitais com dolorosas fitas adesivas mostra-se intrépida e com impressionante sangue frio a furar sozinha as suas orelhas, em casa, apenas com a “anestesia” de uns cubos de gelo. Esse facto irá conduzir os espectadores a uma decisão mais contundente no final do filme, que a aflita Lara, em desespero, acaba por tomar.
Girl é um filme doloroso e pungente que mostra as agruras da vida de uma aspirante a bailarina que tem urgência em ver resultados quando está num processo extremamente difícil do ponto de vista físico e psicológico. Sobretudo por ter escolhido a pior actividade (no campo das Artes) para ter o corpo “resguardado” e prosseguir um caminho com algum recato e sem, por vezes, ter, mesmo, de o “violentar”.
A película, em simultâneo, desmitifica muito bem tanto o cliché do trabalho imaculado dos bailarinos nos estúdios e palcos como a loucura que pode acometer alguns “cisnes negros” quando as coisas não correm de feição. A representação da dança em Girl é correcta e persuasiva tendo o realizador, em nenhum caso, feito concessões no que toca ao realismo da (mais provável do que se imagina) história de Lara.
Mas se o caso de Victor não é assim tão invulgar – numa percentagem que se julga bem mais pequena no universo dos recém-nascidos – o de Lara, curiosamente, assemelha-se a um de estudante da Escola de Dança do Conservatório Nacional, em meados dos anos 70. Então, era um dos poucos rapazes que frequentavam a escola, e que, em simultâneo (caso raro) estudava Medicina na Universidade de Lisboa. Tendo-se formado naquela instituição artística e na escola médica, acabou por seguir a carreira hospitalar. Anos depois voltou à dança – num contexto amador – com um nome feminino no bilhete de identidade e um corpo esguio a rodar em cima de sapatilhas de pontas. Se se sentiu como Lara, na prática da dança, já depois de ser mulher, isso não se sabe.
Numa altura em que se está a tentar “despatologizar” a trasnsexualidade e garantir a autodeterminação de identidade de género em Portugal, esta película é de uma acutilante actualidade. E devia ser vista por um público alargado – e não por uma qualquer minoria – pois este género de “fenómenos” está muito mais presente nos nossos lares do que se imagina. O nosso país foi o quinto a conquistar uma “lei de identidade de género baseada na autodeterminação”. Enquanto a Alemanha já foi mais longe na legislação aplicável a crianças nascidas com órgão sexuais ambíguos ou problemas evidentes na identificação do género antes e durante a adolescência. Utilizar um “marcador de género neutro” até que a identidade de género seja claramente definida e a pessoa trans possa fazer a sua escolha livre e voluntariamente, parece ser uma medida jurídica de maior alcance humano e social.