“The Show Must Go On” – uma Bel (a) provocação

Inquiridos quatro jornalistas (enviados especiais) de vários continentes, sobre as suas expectativas para a Bienal de Dança de Lyon 2008, um deles salientou a importância do espectáculo do francês Jérôme Bel, “The Show Must Go On”.
Estreada em 2001, assim se refere a esta peça o seu criador:
“Ao som dos “hits” musicais dos últimos 30 anos, pessoas como eu e vocês dão às ancas e agitam-se para nós que estamos na sala a vê-los. Algures entre o documentário sobre companheiros e o embuste, “The Show Must Go On” é desconcertante mas divertido, colocando em cena as nossas recordações mais ternas e emocionantes do “clubbing” – dança em boîtes.
Também denominadas “impertinentes sabotagens”, as suas obras (de que conhecemos em Portugal dois solos: “Shirtologia”, concebida para Miguel Pereira e estreada em 1997 no CCB e “Isabel Torres”, de 2005) podem ser vistas como “tranquilas provocações que subvertem os códigos artísticos e sociais” e que “interrogam as convenções relativas aos conceitos de autor e intérprete” e, sobretudo, “desfocam as relações entre a representação e a vida”.
“The Show Must Go On” entrou no reportório da Ópera de Lyon, integrado num ciclo concebido por Yorgos Loukos para a Bienal de 2008 e do qual fizeram parte, para além de Bel, coreógrafos como Odile Duboc, Boris Charmatz e Maguy Marin e William Forsythe.

Inicialmente concebida para 20 "não-bailarinos", 19 canções pop e um Dj, foi reposta, desta vez, com 22 bailarinos… e teve uma (atribulada) duração de 90 minutos.
Antes de rever o espectáculo só sabia que tinha assistido à estreia da peça, no Festival de Montpellier, num espaço que parecia uma espécie de armazém, e, ao contrário da grande maioria das obras que me é dado ver, sete anos depois, não tinha retido uma única passagem da mesma! Por alguma razão apenas me ficou um título (sem grande originalidade, diga-se) e a ideia que, na verdade, nada de muito substancial teria acontecido.
Trata-se de uma proposta essencialmente conceptual – mas não intelectual já que se baseia em clichés e premissas (neste caso musicais) muito conhecidas, mesmo populares – como são todas as de Bel, coreógrafo “branché” muito “à la page”. E que forma um trio muito peculiar juntamente com Charmatz e Christian Rizzo.
“The Show Must Go On” é uma peça desprovida de suor que pode ter sido planeada à mesa da cozinha ou no sofá da sala, asséptica e anódina. Das que não causam qualquer incómodo se a sua apresentação for, devidamente, enquadrada e inserida num anunciado contexto da “não-dança”.
Desprovida de movimento, porém, não divorciada de sarcasmo e inteligência na deliberada provocação.
Uma coisa é certa, na sala de belíssima Ópera de Lyon, a animação nas cadeiras foi bem mais visível que no palco e a barafunda entre os espectadores que, a pouco e pouco, foram saindo criou um clima muito mais divertido que o ar "pós-moderno" (de entediamento) que os "performers" apresentaram ao longo de uma problemática hora e meia. Na verdade, o que terá causado naquele espaço tanto sururu foi o facto dos espectadores – que não pagaram pouco pelos bilhetes – se sentirem defraudados porque devem ter pensado que para ver em cena umas pessoas a "ouvir música"… mais valia terem ficado em casa!
Velhos êxitos musicais, alinhados por um anafado DJ colocado junto do palco, sucederam-se perante a inactividade (e uma certa apatia) de uma linha de bailarinos vestidos como roupa de rua num proscénio nu. Alguns deles, de tempos a tempos, ensaiavam algumas “tontices” – tais como simular sexo e masturbação – enquanto os espectadores tossiam, assobiavam e batiam palmas. Para além disso mais nada aconteceu.
Toda a peça foi acompanhada de gritaria e piadas avulsas do público que atirava aviões (do balcão para a plateia e palco) feitos com os programas do espectáculo. Quanto mais banalidades se sucediam, mais dichotes eram atirados aos bailarinos que permaneciam impávidos e serenos cumprindo, sobre cada música, umas pequenas rotinas (com movimentações mínimas) em busca de um certo humor de ocasião.
Enquanto meia plateia permanecia estupefacta – lembremo-nos que o “show” se apresentava na mais emblemática sala da cidade de Lyon – a outra metade parecia expectante, certamente, em busca do que não via! Entre o ingénuo (todos saracoteando-se com a básica dança da “Macarena”) e o inesperado – um Dj gordo em cena a protagonizar um “Private Dancer”, cantado por Tina Turner – ganhou o humor verrinoso e desconcertante de Bel. Ao que os leoneses responderam com a ironia dos aplausos despropositados e gritos durante todo o tema do filme “Titanic” (na voz de Céline Dion) em que dois bailarinos simularam a famosa pose de Leo (de Capri) e Kate (Winslet) na proa do navio. Quando os bailarinos desapareceram no fosso de orquestra levados por um elevador descendente, e o Dj colocou no prato o “Yellow Submarine” dos Beatles, toda a gente cantou. Seguidamente a cena iluminou-se e a plateia foi confrontada com luzes rosa enquanto que se ouviu a divina voz de Piaf cantando “La Vie en Rose” – o único momento em que, por devoção, respeito ou desnorte da plateia a sala ficou, finalmente, em silêncio durante uns dois ou três minutos. Sucederam-se “The Sound of Silence” (que os bailarinos cantaram no escuro), “Killing Me Softly” e “The Show Must Go On”, que encerrou o evento, com uma certa verve musical.
Em resumo, a peça de Bel – ao contrário de uma coreografia que deixa lastro na memória, quer pela qualidade e invenção do movimento, quer pela sua intrínseca dramaturgia – poderá, com alguma propriedade, reclamar o estatuto de “ocorrência” coreográfica. Mas não mais que isso!
Para pessoas que se divertem a representar o papel de artistas, porque não fazê-lo uma vez na vida em busca de uns momentos de brincadeira?
Mas para bailarinos de topo, treinado para Forsythe, Ek, Balanchine, Preljocaj, Brown, Kylián ou Cunningham, Bel… só mesmo para relaxar das agruras do palco!
 

Published by Antonio Laginha

Autoria e redação

António Laginha, editor e autor da maioria dos textos da RD, escreve como aprendeu antes do pretenso Acordo Ortográfico de 1990, o qual não foi ratificado por todos os países de língua portuguesa.

error: Content is protected !!