À primeira vista, alugar um cacilheiro para apresentar a nova temporada da Companhia Nacional de Bailado (CNB) no meio das Tágides, poderia parecer um acto de verdadeiro espírito patriótico se a mesma não se iniciasse, 15 dias depois no Teatro Camões, com um programa constituído por três obras de Hans Van Manen, seguido por um desinteressante Quebra-Nozes “turco” na época natalícia.
É caso também para referir que, em mais de quatro décadas de existência, a nossa mais importante companhia de dança publicitou uma temporada com mais de um ano de atraso e numa altura em que muitas das suas congéneres já devem estar a fechar a de 2020-21.
Posto isto, a CNB lançou no dia 10 de Outubro um programa triplo, repetitivo e morno, com peças já “gastas” noutras companhias (Adagio Hammerklavier, Short Cut e In the Future) da autoria do supra citado octogenário coreógrafo holandês. O conhecido artista, desde logo identificado com o Het National Ballet, o Nederlands Dans Theater e, mesmo, com o Scapino Ballet foi “novidade” em Portugal há mais de 40 anos, no extinto Ballet Gulbenkian. Entre as suas peças de maior sucesso contam-se as românticas Canções sem palavras, em 78 (para a belíssima música de Mendelssohn, muito adequada para companhias de linha académico-clássica), Crepúsculo (Twilight), em 79 e Cinco Tangos, em 82, em que brilharam bailarinos de superlativa qualidade como Isabel Queiroz, Graça Barroso e Ger Thomas, entre outros.
Adagio Hammerklavier, na sua depurada simplicidade, alvura e calculada geometria abriu o programa sem surpresa (a obra já estava no reportório da CNB) e, mesmo, com uma certa allure. Filipa Castro, Tatiana Grenkova e Miyu Matsui, acompanhadas respectivamente por João Costa, Lourenço Ferreira e Carlos Pinillos, dançaram em pontas com desenvoltura e rigor, sobre a Sonata para piano de Beethoven nº 29, opus 106. São casais que se alternam em cena ou dançam em conjunto exibindo uma técnica clássica sólida temperada com um certo lirismo, debaixo de um enorme rectângulo de pano que está continuamente a mexer-se pela acção do vento. O que não se percebe é uma companhia nacional gastar dinheiro em marketing e outras coisas mais ou menos descartáveis e depois não ter verbas para contratar um pianista para acompanhar ao vivo os bailarinos! Uma companhia minimamente cosmopolita e com a necessária classe de uma grande capital, certamente, não oferece Beethoven enlatado.
Três – que, diz o povo, ser a conta que Deus fez – também dominou o bailado seguinte, Short Cut, com um rapaz (Francisco Sebastião) a dançar com um trio de raparigas: Almudena Maldonado, Patrícia Main e Inês Ferrer, uma música de Jacob ter Veldhuis. E no que fechou o programa o coreógrafo fez rodar dois grupos de três pares. E, se em termos de forma estamos mais ou menos conversados, já no que toca ao conteúdo Van Manen engaja os espectadores na chamada “dança abstracta”. Houve, mesmo, quem tivesse a ideia de o comparar a Piet Mondrian. Haverá, certamente, coisas piores na longuíssima carreira de um prolífico criador!
Mas sim, os trabalhos do mestre holandês, que não apresentam qualquer enredo visível, optam pela dança pura, cristalina e bem-intencionada, abraçam a música e fazem os bailarinos voar. Quase sempre as mulheres nas mãos dos homens, de braços em V e pernas que fustigam o ar sem hesitações.
Short Cut, de 1999, exibe fatos a negro (no elemento masculino) e a branco, amarelo e vermelho, mas é uma peça coreograficamente anémica e sem qualquer surpresa. É mais do mesmo na obra do conhecido e celebrado artista que também é um exímio fotógrafo. Muda a música, mudam os figurinos (que são muito pouco elaborados, pois trata-se de simples malhas justas ao corpo) mas as mesmas quedas, as mesmas corridas e os mesmos jogos no relacionamento entre homens e mulheres em nada se alteram ao longo de uns 15 minutos…
Sendo o último bailado intitulado No Futuro, estreado em 1986 com música de David Byrne, curiosamente ele remete-nos para o passado. O mais interessante da dança em questão são, mesmo, uns efeitos de côr conseguidos à custa de corpos que se revezam em posições frontais e de costas, por vezes em cânone.
Em frente a um telão de simples riscas horizontais a peça assemelha-se a uma brincadeira algo pueril – qual bailado alegre e saltitante com algum jogo de cintura para um qualquer programa de variedades numa televisão dos anos 60 – em que uns figurinos verdes na frente e vermelhos atrás se revelam o dado mais português num “programa de concerto” todo creditado a Van Manen. E em que, infelizmente, dançou menos de um terço do elenco da companhia. Na verdade há muitos, muitos anos, que a CNB não joga com o baralho todo.
Em conclusão, o programa que até começou bem foi descendo de interesse até se afundar num último piscar de olho aos mais incautos, que acabam sempre por aplaudir tudo o que tem ritmo e alguma ginga. Mas não tinha que ser assim pois em 2002, vimos no CCB o Het com um excelente trabalho de van Manen – para uma bailarina, um homem e uma câmara – com uma ideia simples mas efectiva: filmar de vários ângulos e projectar em palco corpos, e partes deles, em actuação, passando a acção do palco para o vestíbulo do teatro e, posteriormente, para a rua produzindo efeitos de rara beleza e enorme prazer visual.
Mas o programa com que a CNB iniciou agora a temporada de 19-20 é o reflexo da situação da própria companhia que, curiosamente, irá a Liège (Bélgica) em 2020 mostrar o seu “portuguesismo, personalidade e qualidade artística e técnica” com um reportório verdadeiramente… holandês!
Texto © António Laginha
Fotografias © Hugo David / CNB 2019