No dia 2 de Janeiro de 2018 – data do último espectáculo em Portugal da famosa companhia de dança de Serge Diaghilev que teve apenas duas décadas de existência, entre 1909 e 1929 – foi publicado nos Estados Unidos da América (Amazon) uma obra intitulada Os Ballets Russes em Portugal (1917-1918) … entre a inquietação e o desânimo.
Percebe-se que a segunda parte do título da obra foi escolhida, propositadamente, para “preparar” o leitor para o verdadeiro “desastre” (para o notável grupo de bailado) que foi a sua vinda a Lisboa, depois de uma fugaz passagem de barco pela capital portuguesa e pelo Funchal em 1913.
Outros adjectivos negativos, mas igualmente apropriados, seriam frustração, desespero e, mesmo, miséria. Até porque, já nos finais da I Guerra Mundial, o grupo só não se extinguiu definitivamente em Portugal – tendo, miraculosamente, ainda durado mais dez anos – por um mero acaso do destino. E, naturalmente, devido à muita persistência e a uma grande dose de resiliência e coragem dos artistas e do próprio empresário. Segundo a bailarina Lydia Sokolova, logo à chegada do grupo a Portugal, uma bomba (nos dias da “revolução sidonista”) destruiu parte do balcão do seu quarto no Hotel Avenida Palace, na Praça dos Restauradores em Lisboa, e, depois da “aventura lisboeta”, Diaghilev chegou, mesmo, a dar-lhe as “últimas moedas do fundo do seu saco” para que ela pudesse comprar medicamentos para sua filha doente que fora obrigada a deixar vários meses em Portugal com uma ama de apelido Abrantes. Só por estes dois factos, não será difícil imaginar, cem anos depois, todo o sofrimento por que passaram artistas, “técnicos” e respectivos familiares, perante um cenário de revolução, guerra, pobreza e uma grande falta de interesse e incentivo artísticos.
Um século após o nascimento da companhia “russa” de Diaguilev, a 19 de Maio de 2009, o mundo comemorou a efeméride da data em que os Ballets Russes (BR) se apresentaram pela primeira vez no Teatro do Chatelêt, em Paris. Desde logo, com retumbante sucesso. No século XXI foram realizadas homenagens e organizados eventos em todo o planeta, tendo muita tinta corrido na imprensa, muitas exposições sido organizadas (com o expressivo espólio ainda disponível da companhia) e muitos livros sido editados. Para juntar aos muitos milhares de estudos que já existiam em muitas línguas, universidades e bibliotecas de todo o mundo.
Em Portugal, uma vez mais, o desinteresse e o investimento (muito residual) na Arte de Terpsicore falaram mais alto e apenas o Centro de Dança de Oeiras (CDO) organizou – cem anos depois do dia e hora em que a companhia se estreou – as comemorações do I Centenário dos Ballets Russes. Tendo-se, então, inaugurado uma exposição de fotografias e cartazes de dança na sua sede, no Palácio Ribamar em Algés, e organizado um colóquio intitulado “O legado artístico dos Ballets Russes e a sua influência na dança portuguesa”, na Biblioteca Municipal de Algés. Foram palestrantes, Elvira Alvarez, Maria João Castro, Helena Coelho e António Laginha. Todos eles com teses de doutoramento em que, de um modo ou de outro, foi assinalada a presença do grupo de Diaguilev em Portugal.
Helena Coelho dissertou sobre “Memórias da presença dos Ballets Russes em Lisboa”, Elvira Alvarez falou sobre “Os Ballets Russes e a produção artística em Portugal, nas segunda e terceira décadas do século XX”, Maria João Castro assinalou a “Influência dos Ballets Russes na criação do Grupo de Bailados Portugueses Verde Gaio” e, finalmente, António Laginha lembrou “O Reportório dos Ballets Russes: Impacto na Dança de Ontem e Legado para a de Amanhã”.
Curiosamente, à Companhia Nacional de Bailado (CNB) no ano de 2009, então dirigida por Vasco Wellenkamp, a que foi proposto um evento em que se poderia ter apresentado um programa com bailados como As Sílfides, A Sagração da Primavera –na versão de Milicent Hodson ou de Carlos Trincheiras – Petruchka, As Bodas, ou Apollon musagète, entre outros existentes no seu reportório, deixou passar o ano de 2009 sem qualquer iniciativa que pudesse lembrar a grande companhia. Apenas em 2010 se apresentou um inusitado programa de “Homenagem aos Ballets Russes” com três peças: As Bodas (segundo o original de Bronislava Nijinska), O Prelúdio à Sesta de um Fauno – numa versão modernizada do próprio Wellenkamp criada para Benvindo Fonseca, anos atrás, no Ballet Gulbenkian e que o coreógrafo foi re-coreografando conforme as oportunidades e ocasiões – e uma leitura contemporânea de A Sagração da Primavera, da autoria do espanhol Cayetano de Soto. Tudo isso aconteceu no Teatro das Figuras, em Faro, nos dias 28, 29 e 30 de Maio de 2010. E assim, bem “à portuguesa”, se passou por cima de um marco histórico verdadeiramente excepcional, para tristeza de todos quantos estudam e valorizam a (breve) história do nosso bailado.
Já na recta final de 2017 e logo no início de 2018, quando se comemorou a passagem do primeiro centenário sobre a única “temporada” dos Ballets Russes em Portugal – e que coincidiu com os 40 anos de existência da CNB – nem Luísa Taveira, que a dirigiu até meados de 2017, nem Paulo Ribeiro, que lhe sucedeu na direcção, se preocuparam em dar ênfase a tão importante evento para a História da Dança Portuguesa.
Instituições como o Coliseu dos Recreios e o Teatro Nacional de S. Carlos – onde a companhia se produziu -, a Escola Superior de Dança ou o Departamento de Dança da Faculdade de Motricidade Humana, ou, mesmo, o Centro Cultural de Belém, não se preocuparam em lembrar a significativa efeméride.
Em Dezembro de 2017, apenas a Imprensa Nacional-Casa da Moeda, S.A. marcou presença publicando uma obra (algo modesta), da autoria da investigadora Maria João Castro, intitulada O Essencial sobre os Ballets Russes em Lisboa.
Finalmente, já a meio de 2018 (com visível atraso em relação à efeméride propriamente dita), em vez de uma (boa), Lisboa inaugurou duas mostras muito “imaginativas” e, que, talvez por isso, levantaram mais dúvidas que aplausos, respectivamente na Galeria da Fundação Millennium BCP (na Rua Augusta) e no Museu Nacional do Teatro e da Dança (no Lumiar). Desde logo porque ambas, praticamente, giram à volta de apenas um objecto original dos BR. E que são, um fato da obra de Nijinski/Stravinski, A Sagração da Primavera (vindo, por empréstimo, do Museu da Dança de Estocolmo a expensas do BCP) e um programa – em papel – ilustrativo dos dois espectáculos realizados no Teatro de S. Carlos.
Desde logo, a curadora da primeira mostra – que estará activa até finais de Setembro – errou não só no título da exposição (Os Ballets Russes: Modernidade após Diaguilev), como na inusitada associação de uma performance “ilustrativa” (prévia à “vernissage”) protagonizada por uma actor no Palácio Foz, nos Restauradores, em Lisboa. É que os artistas dos BR eram indivíduos do mais alto nível artístico e técnico treinados em escolas de inquestionável qualidade para dançar obras de grande sofisticação cénica e profundidade temática. As performances, na época, inspiradas em movimentos artísticos importantes e revolucionários – como é o caso do constructivismo russo para o cinema e arquitectura – ficavam para artistas de vanguarda como Valentine de Saint-Point… e mesmo, o nosso Almada, de quem não se conhece uma única obra (cinética) que ficasse para “memória futura”.
Para tornar ainda menos “profissional” uma exposição dividida por três pisos e que em quase nada de substancial, realmente, se reporta à companhia de Diaghilev, não saiu qualquer catálogo na inauguração. Apenas um folheto de interesse (informativo) muito reduzido. É, pois, muito estranho que das peças espalhadas por três pisos – com imensos registos gráficos em Laban Notation, que nem existia no início do século XX e que se revelam completamente descontextualizados – tenha sido uma meia dúzia de delicadas figurinhas em porcelana representando personagens do bailado Carnaval (Fokine-Schumann) que mais beleza e representatividade conferiram à mostra.
Até uma selecção de vídeos (de reproduções de recriações de bailados dançados em Portugal pelos BR) seria mais interessante do que um tipo de iconografia que é suposto ser tão “moderna” que acaba por nada ter a ver com a verdadeira “vanguarda” que os BR introduziram na dança mundial do século XX. Na verdade, é difícil encontrar no “projecto” em causa algo que justifique esforço e dinheiro e, sobretudo, uma viagem à Baixa lisboeta, para um “encontro” com a companhia de Diaguilev, cem anos depois da sua atribulada passagem pela capital portuguesa.
E o mesmo se poderá aplicar ipsis verbis à exposição do Museu Nacional do Teatro e da Dança (MNTD).
Em resumo, esta é constituída por duas salas com programas, livros, trajes, algumas curiosidades e pouco mais. Organizada em torno de um precioso programa dos BR – o do Teatro de S. Carlos que, por sinal, é bastante menos bonito que o do Coliseu do qual se conhecem dois exemplares em Portugal – a inclusão aleatória de umas dezenas de fatos de bailados do reportório do Verde Gaio levanta muitas questões e, mesmo, alguma surpresa. Fundado vinte anos depois da extinção da companhia de Diaghilev, o Verde Gaio, revelou-se uma espécie de antítese da “modernidade” proposta pelos BR. E, por tal, pouco justificável numa exposição que parece querer mostrar uma iconografia, verdadeiramente, inexistente. Se se queria (verdadeiramente) evocar, honrar e celebrar o legado dos BR mais valia ter-se juntado um conjunto de trajes pertencentes ao espólio das companhias pós-Verde Gaio (Ballet Gulbenkian, Companhia Portuguesa de Bailado e Companhia Nacional de Bailado) que dançaram em Portugal algumas das peças criadas sob a égide de Diaguilev. Assim sendo, muita coisa nesta exposição tem uma conotação “falsa”, designadamente a mala de viagem que saúda os “visitantes” (oferecida pelo bailarino e coreógrafo Armando Jorge) e que nada tem a ver com os BR, mas sim com uma companhia posterior que lhe copiou o nome. E até tem inscrito a pincel o nome da bailarina canadiana Margery Lambert, que dançou muitos anos no extinto Ballet Gulbenkian, nos anos 60 e 70.
Posto isto, pode-se concluir que mais valia um boa exposição – que, realmente fizesse jus à grandeza dos BR e à genialidade de artistas e respectivo empresário – do que duas mostras que muito pouco ilustram a sua passagem por Portugal. E, menos ainda, aquela modernidade que Diaguilev e colaboradores impuseram ao mundo da dança a partir de 1909 com obras seminais como Petruchka, Prelúdio à sesta de um fauno, A Sagração da Primavera, Parade, As Bodas ou Apollon Musagète.
Galeria Millennium > R. Augusta 96, Lisboa > T. 211 131 682 > Até 29 set, seg-sab, 10h-18h
Museu do Teatro e da Dança > Estrada do Lumiar 10, Lisboa > T. 217 567 410 > Até 29 set, ter-dom, 10h-18h