A coreógrafa canadiana Marie Chouniard voltou ao Centro Cultural de Belém (CCB) com a sua companhia de dez bailarinos na obra “O Jardim das delícias terrenas”, inspirado na pintura homónima de Hieronymus Bosch.
Tendo no ano de 2016 se celebrado o quinto centenário da morte do famosíssimo pintor flamengo – que não se sabe ao certo quando nasceu – muitos foram os eventos em sua homenagem, designadamente, uma grande exposição no Museu do Prado, em Madrid, para onde viajou (por empréstimo) as “portuguesas” “Tentações de Sto. Antão”.
O trabalho da coreógrafa de Montreal é bem conhecido dos portugueses, não só por ter deixado duas belas criações no reportório do extinto Ballet Gulbenkian – “A Sagração da Primavera” e “Prelúdio à sesta de um fauno”, ambas em 2003 – mas, sobretudo, por nos ter habituado a um alto nível artístico e coreográfico.
A obra que esgotou o CCB duas noites de seguida – entre digressões ao México e à Roménia e, depois, ao conhecido Festival de Kuopio, na Finlândia – parece partir de uma premissa muito simples: plasmar em movimento a pintura misteriosa e algo “surreal” de Bosch. Porém, vai muito além disso e a sua apresentação, misturando imagens fixas e corpos em movimento, revelou-se exemplar, criativa e muito bem conseguida. Até porque não sabendo nós muitas coisas que o pintor registou na popular obra também não podemos “julgar” a coreógrafa por erros ou omissões na sua interpretação e respectiva tradução para palco e movimento.
Depois de ter, como introdução, sons de pássaros a chilrear na sala, Chouinard mostra o tríptico fechado a abrir-se e logo depois arrancou da tela de Bosch, projectada em tamanho gigante no ciclorama, dez das figuras “brancas” que povoam a pintura. E, em três partes, criou um diálogo subtil mas muito intenso entre o passado e o presente e entre o imaginário e o real. Com sons que se arrastam no tempo e que parecem colagens de ruídos e sons percussivos com vozes humanas.
Para além da imagem principal do tríptico que descreve a história do mundo a partir da criação (apresentado o Paraíso e o Inferno, respectivamente nas abas direita e esquerda) a peça vai apresentado sucessivos detalhes de cenas que se encontram na pintura em dois círculos colocados em cada lado do proscénio. É a partir dessas imagens específicas que os bailarinos, com a pele pintada de branco e apenas um “cache sex”, vão desenvolvendo sequências – descartando alguns objectos, como maçãs e ovos, que acompanham as figuras nas imagens originais – e ligando as poses a alguns movimentos simples, por vezes minimais e algumas vezes também repetitivos. Percebe-se que a experiente criadora trouxe para o proscénio algumas poses marcadamente bidimensionais que os artistas reproduzem com enorme sentido estético, tanto sugerindo pessoas com figuras irreais, nomeadamente sereias e tritões.
Ainda na primeira parte da peça uma grande e enigmática “bolha” de plástico transparente é empurrada pelos artistas do canto superior direito para o esquerdo do palco, para depois entrarem todos nela numa alusão às várias bolas pintadas por Bosch no seu “jardim”, designadamente um globo de vidro com dois amantes nele encerrados.
A segunda parte – intitulada o Inferno e alusiva ao painel da direita – começa com uma figura imponente em cima de dois volumes plásticos com um microfone colado à boca a reproduzir sons fantasmagóricos e gritos, enquanto se contorce animalescamente. Os outros bailarinos vão enchendo o palco com baldes, bolas, escadas, um esqueleto e outros objectos não identificáveis e mais ou mesmo estranhos, numa alusão (ainda que “suave”) ao lado mais escuro da existência humana. Esta secção, meio caótica, com ritmos diversificados e sons violentos e algo perfurantes – que aperem saídos de instrumentos fantasioso – apresentou alguns laivos de “surrealismo” mas nunca danças marcadamente “infernais”. Em conjunto ou cada um em separado, os bailarinos gritaram, esbracejaram e espernearam, sem contudo, passarem de um nível meio rasteiro e controlado não muito identificável com as “artes de Satanás”. Não se deve esquecer que o trabalho de Chouinard, mais ou menos audacioso e mais ou menos impactante, numa se afasta muito de uma esfera protegida com uma certa dose de pudor e algum decoro. Descartando completamente todas as alusões eróticas e imagens sexuais explícitas da imaginação “boschiana”.
Na última parte – referente ao Paraíso – o ciclorama reproduz um excerto da parte inferior da tábua esquerda com a criação de Adão e Eva com um Cristo de manto rosa entre eles. Um bailarino protagoniza seraficamente a estática figura central enquanto uma mulher se senta no lugar do homem e um homem se ajoelha no lugar da mulher, seguidos pelos outros sete que lentamente repetem as poses do quadro.
Ao fim de quase hora e meia, os bailarinos em conjunto começaram a deslocar-se lentamente para trás até se encostarem ao ciclorama “dissolvendo-se” na imagem de um enigmático dragoeiro que simboliza a “árvore da vida”. Enquanto o tríptico gigante se fecha lentamente no ciclorama as pálpebras dos olhos (um com a íris azul e outro com verde) projectados nos círculos laterais descem e a cortina cai sobre o palco. Fechando ao espectador a porta de um jardim dos prazeres da vida, se não prenhe de delícias, pelo menos recheado de “bons” espantos.