Quem conhece o percurso de Madalena Vitorino sabe bem que a obra do fim de 2009, “Vale”, é, de longe, a mais profissional e a menos fraca em termos de composição e variedade de material coreográfico que produziu em 20 anos de uma carreira altamente “burocratizada” (coreógrafa por diploma que nunca dançou profissionalmente) e dependente das instituições às quais se foi associando.
Note-se que o referido trabalho – que chegou a Lisboa em Março de 2011, ao Teatro da Trindade – foi encomendado pela Artemrede e agendado (mesmo antes de ter sido criado e necessitar de uma esperada caução ou prova de qualidade) para mais de duas dezenas de teatros em todo o país. Um luxo a que só um “coreógrafo do regime” poderá aspirar e, mesmo, se orgulhar. O mesmo regime (o qual indicou jurados sem critérios claros e objectivos) que até premiou a peça numa gala televisiva no CCB, em 2011, instituição cultural do estado, de onde Vitorino, fora, pouco tempo antes, afastada.
Finalmente chegou à capital, e a um palco carismático, uma dança – porque desta vez trata-se de uma dança e não um esboço de qualquer coisa – certamente muito aguardada pelos muitos ex-alunos da professora que há muito trabalha para a “comunidade”. Entenda-se por comunidade de Vitorino, um conjunto de “diletantes da não-dança” – deslumbrados com as suas “proezas” performativas que nada têm de físico nem profissional pois carecem dos mais elementares conhecimentos teatrais – mas, alguns deles, exercem os mais altos cargos da nação e nível da política, do jornalismo e da gestão de artes.
Se alguma “qualidade” Madalena Vitorino apresenta é… ser igual a si mesma.
Desde a sua “Torrefação” (1990), pouco mais se pode detectar nas peças que apresenta que uma acumulação de toda a espécie de clichés e de umas ingenuidades coreográficas. Além de uma evidente falta de substância temática e, sobretudo, de uma confrangedora paleta de material coreográfico. Muito bem dissimulada, aliás, com a muleta/truque da improvisação como método e, com a generalizada prática da co-criação com os intérpretes que, conforme as suas capacidades físicas e experiência cénica, fornecem a, ainda que pobre, “seiva” que alimenta o olho do espectador. Se do ponto de vista de movimento a coisa é mesmo franciscana, do ângulo dramatúrgico, os trabalhos desta professora não vão muito além de trivialidades apresentadas sob a capa de uma falsa euforia anímica.
Apesar da mesma misturada de amadores com profissionais – um cunho de Vitorino e uma moda a que aderiu e que já deixou feridas no presente e marcas para o futuro próximo – de um pretensioso clima de eterna felicidade (e facilidade), de muitos meios – seis óptimos músicos em cena e projecções de cabras, vacas e cavalos, sobre os intérpretes – de um gosto duvidoso no visual (os figurinos são atrozes), de velhos, crianças e deficientes, para encher o olho das famílias e a própria “identificação” com o comum dos espectadores, melhorou bastante em termos gerais. Porém, um dos maiores problemas de “Vale” continua a ser a total incapacidade da autora para desenvolver e dar resposta ao problema que ela própria coloca a si mesma: integrar pessoas com treino com outras que, embora se proponham a grandes habilidades, jamais poderão evitar sentir-se mal na sua pele de (inusitados) artistas da dança.
Quando entram quatro dezenas de “figurantes” pelo palco adentro, o mesmo não deixa de ficar cheio de almas que respiram as luzes exibindo umas peles de animais nas mãos, mas, na verdade pouco ou nada acontece com elas! O movimento, como já se referiu é ralo e a dramaturgia sem qualquer verve, com os bailarinos frequentemente a olhar e a sorrir para a sala iluminada, a tentar provocar alguma reacção da plateia. Possivelmente uma empatia que não conseguem sacar do público quando dançam. Também ensaiam outro tipo de truques já muito gastos, como sair do palco e andar entre os espectadores por cima dos assentos.
"Nesta terra onde o rio é mar, aprendemos que a pele tem flor, que o gado tem vida de homem, que os lençóis são de água escura, que as pedras se rebentam para fazer nascer as oliveiras, que no tomilho poisam morcegos, que o vento lava, leva e traz", nas palavras de Madalena Vitorino. Valerá a pena dizer mais?
Em resumo, a melhor coisa de “Vale”, para além de alguns conjuntos executados por quatro rapazes, é a energia das bailarinas e os dedos encarquilhados e as caretas da espanhola Ainhoa Vidal. Para além dela apresentaram-se em cena Costanza Givone, João Vladimiro, Lucília Raimundo, Marta Silva, Martinho Silva e Miguel Fragata.
A atractiva música de Carlos Bica – que sempre se sobrepõe ao movimento – foi interpretada por André Silva (guitarras), Carlos Santos (baixo eléctrico), Emanuel Soares (acordeão), Isaac Achega (bateria), Luís Martins (guitarras) e Pedro Salvador (guitarras).
Para quem tinha algumas dúvidas sobre a falta de espessura de “Vale”, passou pelo CCB (no mesmo fim-de-semana) e teve o privilégio de assistir à poderosa peça “Babel”, pôde verificar que com vales “a meio caminho entre a província e o subúrbio” onde se insinua um arremedo de “toureiro que se faz ao touro”, a não-dança portuguesa já, há muito, que deu o que tinha a dar!
"Nesta terra onde o rio é mar, aprendemos que a pele tem flor, que o gado tem vida de homem, que os lençóis são de água escura, que as pedras se rebentam para fazer nascer as oliveiras, que no tomilho poisam morcegos, que o vento lava, leva e traz", é “Vale” nas palavras de Madalena Vitorino.
Valerá a pena dizer mais?