Ao encontro de uns instrumentos (tradicionais portugueses) “sentados” em cena, os artistas – que, como em qualquer grupo de folclore são músicos, bailarinos e cantores – vão, pouco a pouco, povoando o palco. E uns sons misteriosos, progressivamente, dão lugar a uma sequência aleatória de música “popular” portuguesa.
Como se de um ritual se tratasse, André Cabral, Bruno Alves, Francisca Pinto, Joana Lopes, Linora Dinga, Sergio Cobos, Catarina Moura, Luís Peixoto e Quiné dão início a movimentações que vão começando a conquistar terreno e a expandir-se em sucessivos blocos de acção. Os homens afoitam-se a caminhar pelo palco e logo depois a rodopiar e a saltar contaminado as mulheres numa aparente alegria motivada apenas pelo prazer de dançar. Todos com os braços erguidos – como que a querer abraçar o espaço e voar – seis bailarinos vão se desmultiplicando em danças mais ou menos alegres e mais ou menos viris. Enquanto alguém canta uma toada mais ou menos melódica ou mais ou menos picada os homens vão dominando deliberadamente o espaço enquanto as mulheres soltam os seus corpos em jeito de desafio. Para apimentar um pouco um desfiar de evocações das festas campestres portugueses de outrora, a coreógrafa, Clara Andermatt, até confecciona uma espécie de escapadela homo-erórica – com um par homens a envolverem-se fisicamente – a que duas bailarinas respondem com uma inusitada atitude de desbragamento sexual.
Tudo neste “Fica no Singelo” apresenta um ar informal e casual com excepção dos trajes que vestem os artistas, da autoria do conceituado figurinista José António Tenente. Sobretudo os das mulheres, pois o elementos masculinos acabam despindo a roupa supérfula (que não se afasta muito de tonalidades terra) e ficam praticamente todo o espectáculo em calças e camisolas de alças.
A determinado momento – deliberadamente ou não – o espírito de Pedro Homem de Mello parece descer e ficar a pairar sobre um palco em que a coreografia nunca atinge o porte decorativo das peças de Francis Graça nem os figurinos a sofisticação e esplendor dos do “folclore estilizado” utilizados pelo antigo Verde Gaio. As reminiscências – não as comparações – são inevitáveis e o questionamento estético e formal também.
Que dança é esta em que Clara Andermatt agora mergulha? A sua experiência criativa em “Dançar Cabo Verde” (de colaboração com Paulo Ribeiro, em 94) foi mais ou menos “réussie” que esta incursão num folclore urbano com laivos de novidade? Trata-se de uma vertente de dança contemporânea aculturada ou apenas um exercício de folclore tradicional um pouco envergonhado? Um saudosismo inconsequente ou um mero pretexto alegórico na senda de um entretenimento “light” a piscar o olho a um público sedento de experiências exaltantes no campo da dança em Portugal? Tudo isso pode encerrar uma obra cujo material coreográfico por vezes é engenhoso mas nunca muito elaborado. A coreógrafa utiliza maioritariamente passos rasteiros muito simples alinhavados com sequências de saltos repetitivos que encontramos em qualquer dança folclórica por esse país fora. Em uma ou outra sequência Clara Andermatt tenta desconstruir as apresentações dos grupos folclóricos ao trazer à cena uma certa informalidade. Mas de base objectivamente intelectual. Em algumas “cenas”, inclusivamente, simula (ou caricatura) danças como o corridinho do Algarve, faz dois homens baterem um fandango ribatejano de joelhos e até desenvolve um “baile mandado” por um bailarino que vai puxando por mais outro e duas bailarinas num dança de “acumulações” de movimento num “crescendo” que atinge o seu clima com todos a rebolarem-se exaustos no solo. Se as cenas e danças invocam uma certa ruralidade na atitude dos intérpretes já os segmentos não dançados que lhes servem de separadores são longos, algo entediantes e encerram alguma bizarria. Por exemplo, mais ou menos a meio da peça, a própria coreógrafa surge em cena – vinda do nada – e macaqueia, sentada numa cadeira, o toque repetitivo de uma gaita-de-foles de um modo obsessivo e algo ridículo. O que, naturalmente, arranca gargalhadas do público quando ela sai mencionando o nome do instrumento.
Na verdade o público que encheu o grande auditório da Culturgest (em 25 de Janeiro depois da peça se ter estreado em Viseu em 13 de Dezembro de 2013) reagiu com alguma exuberância perante uma obra que entretém mas cujo conteúdo é bastante discutível e, pode dizer-se, mesmo, até confusa nos propósitos.
E tudo termina como começou, baixando devagar a luz sobre os instrumentos mudos e encostados no solo, cansados de tanto vibrar, até os artistas sairem de cena e o público se confrontar com uma penumbra que aclama os corações que, entretanto, bateram algo descompassados.
Fotos: Inês D’Orey