O “duende” está-lhe no sangue e na alma, ou não viesse Juan Manuel Fernandéz Montoya, “el Farruquito”, de uma família de artistas de alta linhagem no flamenco. Segundo ele próprio afirmou no final de um espectáculo único no Centro Cultural de Belém (CCB) integrado no VI Festival de Flamenco de Lisboa – no dia 7 de Maio – esteve cá “com a família quando tinha uns nove ou dez anos” e espera “que não passem mais 20 sem regressar a Portugal”. A arte do flamenco, neste caso, revela-se como uma benção genética já que o seu irmão mais novo é outro caso sério no círculo restrito dos grandes “bailaores” da actualidade.
O público, que quase encheu o CCB, provavelmente também reclama a sua volta já que o jovem artista deu um concerto vibrante, de grande honestidade artística e sem artifícios nem truques, estabelecendo, desde logo, uma forte empatia com o público. Genericamente Intitulado “Improvisao”, assim que bateu com os tacões a primeira vez no solo se percebeu que estávamos perante um artista cujo trabalho está bem enraizado nas fortes tradições da raça cigana, sem modernismos nem adereços supérfluos, roupas sofisticadas, sonoridades laboratoriais ou piscadelas de olho ao público. O trabalho deste sevilhano, nascido em 1982 e filho do “cantaor” Juan Fernández Flores, “el Moreno”, e da “bailaora” Rosario Montoya Manzano, “la Farruca”, surge na senda do legado do seu avô, o lendário “Farruco”, falecido em 1997. Aliás, ainda criança, Juan Manuel estreou-se na Broadway, em Nova Iorque, em “Flamenco Puro”, um espectáculo que arrebatou plateias em meados dos anos oitenta e que integrava quase todos os expoentes do flamenco da época, incluindo o seu avô e outros membros da sua conhecida família.
O evento, em que o artista assumidamente se apresenta com uma forte base de improvisação relativamente à música e a uma estrutura pré-estabelecida, desenrola-se todo num palco apenas habitado pro sete cadeiras. Os seus acompanhantes, vestidos de negro, enquadraram o trabalho coreográfico dando-lhe um suporte essencial (dois casais de “cantaores-palmeros”, para além de um guitarrista e um percussionista) durante cerca de hora e meia. Terão sido Román Vicenti, na guitarra, e no “cante” Pepe de Pura, La Mary, Anabel e Antonio Villar, uma vez que o CCB e a organização não imprimiram programas ou uma simples folha com os dados técnicos do espectáculo.
Farruquito é uma artista de pequena estatura, esguio e elegante, de cabelos longos, olhos vivos e sorriso rasgado. Mas, sobretudo, um virtuoso do “taconeo” cuja sobriedade, concentração e garra nunca o deixam afastar de uma arte pristina e sempre vibrante. Num palco desprovido de qualquer cenografia – a luminotecnia foi tão discreta como impecável – apenas a alma e os sentimentos encheram a cena. Envergando um fato cinzento, o artista andaluz cuja imagem de marca passa pela mão direita segurando a aba do casaco e a esquerda sobre o ventre enquanto executa nervosas sequências de e batidas no solo com os pés, começou o espectáculo deslocando-se de foco em foco luminoso espalhados pelo palco com um fervor e uma energia dignos de nota. Por seu lado, os “cantaores”, que se moviam em cena com alguma liberdade, gritavam lamentos vindos do peito e de gargantas roucas e profundas…
O espectáculo desenrolou-se todo entre blocos alternados de canto e dança, com apenas um solo de guitarra quase no seu epílogo. O segundo fato com que o bailarino se apresentou – depois de um segundo “intermezzo” musical – era completamente branco e a terceira muda foi para um fato grená, antes de aparecer todo de negro numa despedida mais que improvisada. Todos os elementos do grupo chegaram-se à frente da cena numa mini “jam session” com maior intimidade, como se estivesse em cima de um “tablao” cigano, com o público completamente rendido à arte de Juan Manuel. Antes de deixar a cena, Farruquito pegou num microfone e fez um curto e singelo discurso em que agradeceu ao público os aplausos e demonstrou o seu grande carinho pelos espectadores portugueses.