A muito esperada gala de dança que encerrou os trabalhos da 50ª edição dos Prix de Lausanne (PL) realizou-se na tarde de 5 de Fevereiro no Teatro do Beaulieu – casa do Béjart Ballet – e reuniu na Suíça a nata do bailado internacional.
Como seria de imaginar, a organização não poupou esforços para ter presente – numa data tão significativa para o evento – um expressivo grupo de antigos laureados, que estão no activo como bailarinos, coreógrafos e professores em algumas das maiores instituições ligadas à dança, espalhadas pelo mundo. E alguns bailarinos de renome convidados para o efeito, como a estrela russa Olga Smirnova e o brasileiro Victor Caixeta que encerraram duas magníficas horas de bailado.
É verdade que em meio século de competição somaram-se muitas dezenas de artistas no podium tendo a direcção do PL conseguido ter no painel de jurados, Sylviane Bayard, a primeira vencedora (em 1973) e na plateia o único artista que ganhou o concurso duas vezes (em 2007 e 2009) o bailarino-coreógrafo português Telmo Moreira.
Entre muitos outros exemplos de personalidades convidadas marcaram presença a antiga bailarina da Companhia Nacional de Bailado e dos Ballets de Monte Carlo, Paola Cantalupo (também laureada em Lausanne), que é actualmente directora da antiga escola de Rosella Hightower, em Cannes, o famoso bailarino russo Azari Plisetski, coreógrafo e professor do Béjart Ballet e coreógrafo – que tem também nacionalidade suíça – e muitos outros professores e directores de companhias e escolas famosas na Europa (como Elizabeth Platel, Nicholas Le Riche e Monique Lourdières, da Ópera de Paris) e, sobretudo, de países como o Japão e a Coreia do Sul.
Gala internacional
Tal como seria de esperar num espectáculo que se pretendia tão variado quanto possível apareceu um pouco de tudo, mas, curiosamente, o maior número de artistas veio, mesmo, do Reino Unido. País que recebe bolseiros – na sequência dos diplomas ganhos no PL – na escola do Royal Ballet, mas que, há muito, deixou de enviar concorrentes para competição! Assim como a escola do Ballet da Ópera de Paris e outras instituições de gabarito internacional.
O evento abriu com um dueto romântico, extraído da Dama das Camélias, de John Neumeier, protagonizado pela ballerina romena Alina Cojucaru (PL de 1997) e o conhecido “danseur noble” alemão Friedman Vogel (PL de 1997) ao som da tocante música de Chopin.
Seguiu-se um dueto, Cloisure, com coreografia de Juliano Nunez interpretado por Laura Fernandez, do Ballet da Geórgia e Xander Parish, do Ballet Nacional da Noruega, vencedores do PL, respectivamente, em 2016 e 2018.
Dança dos espíritos abençoados, uma coreografia de Sir Frederick Ashton para a música de Glück, foi a escolha da estrela do Royal Ballet, Matthew Ball.
Seguiu-se o icónico pas-de-deux do segundo acto de Giselle no palco do Beaulieu, com uma Madison Young (vencedora do PL em 2016) etérea e possuidora de um estilo puramente romântico, acompanhada por um Albrecht, mais do que competente, Julian MacKay (PL de 2015). Actualmente ambos são bailarinos principais do Ballet do Estado da Baviera, em Munique (Alemanha).
Uma das melhores surpresas da noite foi um dueto masculino, como música de Debussy, protagonizado pelo brasileiro Marcelo Gomes (ex-Royal Ballet e PL de 1996) e pelo espanhol Alejandro Azorín (candidato premiado em 2011). David Dawson criou, sobre o famoso Prelúdio à sesta de um fauno, uma obra de contornos vagamente homo-eróticos, muito fluida e envolvente.
O conhecido pas-de-deux do III acto do Lago dos Cisnes, o denominado Cisne Negro, foi um excelente veículo para o virtuosismo da espanhola Elisa Badenes (candidata ao PL em 2008 e artista principal do Ballet de Estugarda) e do russo Vadim Muntagirov (PL de 2006 e bailarino principal do Royal Ballet).
Uma das notas dissonantes da gala foi a escolha da russa Maria Kotchekova (PL de 2002): um solo “contemporâneo”, com um vestido comprido grená, sem grande criatividade coreográfica e, sobretudo, uma interpretação algo divorciada de uma técnica condizente.
A “embaixada” portuguesa
Para além de dois jovens concorrentes vindos da escola de Annarella Sanchéz, em Leiria – que não passaram à finalíssima – a representação portuguesa no PL de 2023, no Projecto Coreográfico das escolas Associadas, contou com a presença de uma aluna selecionada pela Escola Artística de Dança do Conservatório Nacional, Teresa Abreu, para integrar um grupo de mais 23 jovens de escolas de todo o mundo que participaram na criação de Bold, de Goyo Montero.
A obra, montada numa semana e estreada no dia anterior, foi incorporada na Gala de Estrelas e recebida com um aplauso muito expressivo. O largo número de intérpretes, a sua juventude e energia, e um trabalho muito bem estruturado – para as partituras de Owen Belton e Claudio Frasseto – fizeram de Bold um bailado apelativo e completamente diferente de tudo o que apareceu antes e depois.
A seguir à única peça de grupo apresentada na gala do PL, surgiu a inglesa Francesca Hayward e mais outra estrela do Royal Ballet, o português Marcelino Sambé (finalista do PL de 2010). Tendo escolhido um dueto do bailado O Sonho, de Frederick Ashton, para a música de Mendelssohn, apesar de um desempenho exemplar, a obra não permitiu grandes virtuosismos. Pelo que, os muitos aplausos do público premiaram seu simbolismo, fantasia e leveza.
O bem-humorado Steven McRae (PL de 2003), artista muito querido do Royal Ballet, foi uma das presenças mais inesperadas e estimulantes da gala, uma vez que escolheu uma peça completamente fora do formato! Tratou-se de um solo picado, nervoso e tecnicamente de tirar o fôlego. McRae pegou nas estafadas czardas de Monti, calçou uns sapatos de tap dance e coreografou para si uma dança popular, sonora e cheia de mudanças de direcção e ritmo, interpretada com uma velocidade alucinante. O público não podia ter ficado mais feliz e contagiado pela generosidade, sorriso e talento do bailarino australiano.
Os brasileiros Mayara Magri (PL de 2016) e Victor Caixeta (candidato ao PL em 2015) protagonizaram o famoso pas-de-deux do bailado D. Quixote, de Petipa. Com uma presença impactante e enorme segurança, virtuosismo e um toque de sensualidade, a ballerina do Royal, mostrou que é uma das grandes artistas do seu país e que o seu partner não lhe fica atrás. Não tendo sido por acaso que, até há pouco, fazia sucesso no palco do Bolchoi.
Azorín voltou a palco para um solo, com coreografia de Houston Thomas, para a música de György Ligeti.
Os norte-americanos que dançam no English National Ballet, Precious Adams (PL de 2014) e Eric Snyder (finalista do PL em 2018 e candidato em 2020) interpretaram um dueto, Terra Amarga, de Christopher Wheeldon (coreógrafo do Royal Ballet e PL de 1991) .
Outra norte-americana, Mackenzie Brown (PL de 2019), optou por um solo em “jeito de tango”, algo mecanizado e coreograficamente com pouca coerência técnica e estética. O casal de Leiria (Portugal) Margarida Fernandes e António Casalinho – solistas do Ballet do Estado da Baviera – voltaram a palco e a levantar o público das poltronas no pas-de-deux já dançado no dia anterior: Diana e Acteon. Com o mesmo aplomb, alegria e verve, os bailarinos formados por Annarella Sanchéz, foram, sem dúvida, os melhores representantes da dança portuguesa em Lausanne. Margarita é uma artista expressiva e muito segura para a sua idade e parece ser uma bailarina ideal para papéis de meio carácter. Enquanto o seu companheiro, António, com apenas 18 anos, exibe-se com o rigor dos bailarinos ingleses, o virtuosismo dos russos, a classe dos franceses e uma luz e charme muito pessoais. Se dúvidas houvesse, Casalinho executou na sua variação uma série de tripos “tours-en-l’air”, proeza rara entre bailarinos clássicos, e que nenhum outro artista mais experiente e maduro ousou arriscar.
O evento – que durou cerca de duas horas sem intervalo – encerrou-se com o famoso solo de Fokine que para sempre lembrará Anna Pavlova, A Morte do Cisne (música de Saint Saens) numa interpretação cuidada e nostálgica da ballerina japonesa Mizuka Uemo (PL de 1993) e o dueto final do Quebra-Nozes, com coreografia de Jean-Christophe Maillot. Apesar das magnificas presenças de ballerina russa Olga Smirnova – agora contratada pelo Het National Ballet, de Amsterdão – e do talentoso Caixeta, também a trabalhar no Het, a peça apareceu fora de contexto, o período natalício, e com uma composição coreográfica nada entusiasmante. Aliás, com bastante menos interessante daquela que, normalmente, se toma como original.
Smirnova, uma inesperada heroína que fez críticas à Rússia, denunciou Putin e, voluntariamente, deixou o Bolchoi, é uma artista de craveira mundial que nos lembrou em Lausanne que a dança moderna do século XX e a contemporânea do XXI tornou a dança mais democrática e acessível ao comum dos seres humanos, mas que é o bailado académico-clássico (com todo o seu virtuosismo, panache, colorido, glittering e carácter celebratório) que continua a levantar plateias e a fazer sonhar crianças e adultos num mundo em que – com guerra e catástrofes várias – transborda o sonho e a fantasia.
Fotos: António Laginha