Há obras do reportório, dito clássico, que se associam em todo o Mundo a certas épocas festivas, como é o caso, por exemplo, do “Quebra-Nozes” ou do genial “Petrushka” (Fokine/Stravinsky). Porém, em Portugal, nem sempre é assim. Na programação da Companhia Nacional de Bailado (CNB) existem, seguramente, alguns dados recorrentes como seja o deliberado desencontro entre aquelas duas premissas.
Desta vez, o novíssimo “Carnaval” estreado a 16 de Junho – uma fantasia coreografada por Victor Hugo Pontes a partir do (divertido) “Carnaval dos Animais” de Camille Saint-Saëns (1935-1921) – parece vir com um atraso de meses. O que é menos grave do que, como já aconteceu, se dançar bailados em que a “mortandade” abunda, no período natalício, já que agora se trata de uma peça em que até se pode descartar o vector “festivo” e, ainda assim, servir muito bem o imaginário infanto-juvenil. E foi, realmente, o que aconteceu no Teatro Camões.
Apesar da sala pouco composta, algo apática e, maioritariamente, preenchida com convidados, o palco esteve sempre povoado por muita bicharada, agrupadinha e bem comportada, designadamente, “colónias” de pinguins e flamingos, figuras mitológicas, como faunos e sereias, bichos rastejantes (tartarugas, lagartos e formigas) e até animais saltadores: sapos. Foi muito positivo que quase todos os artistas no activo da companhia fossem convocados para dançar, tivessem sido chamados a calçar sapatos de ténis e desafiados a se transformarem em animalejos imitando um longo desfile de seres de um jardim zoológico imaginário. A talho de foice pode se acrescentar que antes fosse uma peça “feita com o coração nas mãos” e que agitasse as almas, e porque não, assumidamente inspirada num trabalho espesso e de grande profundidade emocional e dramática como é o caso de uma “Glass Menagerie”, de Tennessee Williams (por cá traduzido por “Zoo de Cristal”, ainda que a palavra “menagerie” nos remeta para o vocábulo francês que designa colecção de miniaturas de animais). O mais famoso de todos, que o compositor gaulês ainda viu coreografado em vida, é o cisne. Ave demasiado previsível na obra de Pontes já que este faz repetir os espanejamentos celebrizados pelos braços da célebre “ballerina” russa Anna Pavlova (1881-1931) inventados por Mikhail Fokine (1880-1942), por uma bailarina descalça (Henriett Ventura) e sem a mítica penugem branca no fato e na cabeça.
Os “bonecos” que se vão sucedendo em cena seguem a sequência musical delineada por Saint-Saëns – que apresenta uma duração que nem chega à meia hora -, mas que é aumentada com mais uma hora de som e movimento. Na verdade, ainda que o autor da coreografia tenha utilizado um estratagema inteligente, que foi juntar aos movimentos musicais da peça do compositor gaulês doze trechos originais de outros tantos compositores contemporâneos (onze nacionais e um argentino residente há muito no nosso país) e mais uns animais que estes trouxeram à ribalta, a longa dança parece mais próxima de uma evocação de imagens extraídas do National Goegraphic Channel do que daquilo a que, frequentemente, se associa com as festas dedicadas ao rei Momo. E se os figurinos, que são colados aos corpos muito coloridos e com franjas ou cor de carne, não trazem nada de muito novo – antes pelo contrário e ainda combinam mal com o calçado – já dançar em sapatos de ténis é uma novidade para os artistas da CNB que trabalham frequentemente de sapatilhas de meia ponta ou de pontas. E estão treinados, seguramente, para voos muito mais altos, em termos técnicos e artísticos.
A cenografia, por seu lado, resume-se a uma espécie de mandala metálica gigante, composta por linhas de néons e círculos de luzes incandescentes, suspensa por cima das cabeças nervosas dos artistas, que vão mudando de forma e de cor ao longo da peça. Este enorme (e dispendioso) artefacto de “discoteca” cria diversas tonalidades e, por vezes, zonas luminosas de excelente efeito cénico habilmente desenhadas por Wilma Moutinho. A peça – mais outra na carteira de Pontes dançada num previsível palco em rampa – exala uma certa candura. Dir-se-ia, mesmo, um doce apelo a um bucólico mundo onírico de faz de conta, mas falta-lhe densidade dramática e, sobretudo, o humor e o burlesco. Dois condimentos que trazem algo de tão particular e excitante à desbragada época que precede a recatada Quaresma. Já para não falar na falta de sensualidade desde Carnaval (para “criança ver”) que parece ser algo a que o coreógrafo é pouco dado. A secura do movimento, anguloso e agitado, em certos trechos lembra mesmo o trabalho antológico dos anos 60 e 70 do mago norte-americano Alwin Nikolais (1910-1993) na sua vertente abstracta e com efeitos técnicos a partir da geometria corporal e de uma imaginativa iluminação. A obra é algo repetitiva não logrando aproximar-se de um alegre e ruidoso carrossel nem dum dramático poço da morte, imagens que Pontes afirmou ter trazido para o seu “programa” de trabalho.
Este “Carnaval” fica, pois, num limbo em que mais de três dezenas de bailarinos em cena cumprem toda uma sequência de números – em que os animais retratados são mais ou menos reconhecíveis e com maior ou menor graça – que nos lembra, carregada de nostalgia, a bela e ágil “dança dos flamingos” com música de Saint-Saëns creditada a outro génio do passado – Walt Disney.
Foto: Bruno Simão