O primeiro centenário do nascimento do “nobilizado” escritor português José Saramago – que só se irá cumprir no dia 16 de Novembro de 2022 – tem vindo a ser pretexto para a criação de muitas e boas obras em Portugal, nos vários domínios da Literatura e das Artes.
Na área da Dança, tanto quanto se regista, o primeiro trabalho surgiu em Loulé (no dia 4 do pretérito mês de Junho) pela companhia Dança em Diálogos, intitulado Memorial do Convento e com coreografia de Fernando Duarte. Três semanas depois foi a vez de Olga Roriz, a convite da Companha Nacional de Bailado criar no Teatro Camões a peça Deste Mundo e do Outro, que foi reposta a 24 de Setembro o Centro Cultural de Belém, com assinalável êxito.
Ora, a conhecida criadora – com a colaboração de João Rapozo, na banda sonora, Pedro Santiago Cal na cenografia e Cristina Piedade no desenho de luz e captação de imagens -, foi buscar o título do seu bailado a uma obra de 1971, do supracitado escritor, constituída por 61 crónicas escritas nos anos de 68 e 69. E, ao invés de se centrar num dos muitos escritos de Saramago, optou por revisitar (de um modo bastante simbólico, como é seu hábito) uns poucos romances, mormente, A Jangada de Pedra e Memorial do Convento. Ora é, precisamente, a personagem central do primeiro, Joana Carda, que, algo solitária e até tocada por um certo mistério, surge num palco nu rodopiando com uma longa e pesada peça tubular, riscando o chão de um mundo que parece só a si pertencer-lhe. Ao quebrar “os sete selos do Livro do Apocalipse […] desentranhando o poder do discurso em todas as suas potencialidades de transformação“ (Luis de Sousa Rebelo no posfácio de A Jangada de Pedra, editorial Caminho – Lisboa, 1986, p. 338) a coreógrafa dá o mote para uma obra que percorre vários tempos, num só tempo, e se desmultiplica numa viagem (de comboio) e de memórias que não deixa o espectador tirar os olhos do palco ao longo de quase uma hora e meia. Se os primeiros dez minutos, com Andreia Mota no centro de um palco – que exibe um rectângulo gigante que funciona como moldura para um ecrã que se situa num plano posterior – a manipular solitariamente um objecto que requer alguma destreza física, são um pouco lentos, a entrada (pelo lado direito do palco) de um grupo de “cães de Cérbero” humanos, confere ao trabalho um peso e uma sensação de continuidade muito bem articulados. Ao som de batidas espaçadas sobre uma faixa de som constante – a música original da obra foi encomendada à bailarina-coreógrafa São Castro e coabita com trabalhos de mais oito compositores -, criando um clima de peso e exaustão, uma “matilha” desloca-se – sobre as mãos e os joelhos – da direita para esquerda, incluindo um corpo humano nu que, naturalmente, sobressai. Corridas, quedas e saltos criam um clima que abre portas à entrada de alguns casais de “humanos” que se continuam a deslocar em cena, sempre na mesma direção. Percebe-se que a coreógrafa estruturou o trabalho como nos quisesse brindar com um longo e continuado desfile, em que 31 bailarinos vão saindo pela esquerda alta e entrando pela direita baixa, como se o seu número fosse infinito. Ao mesmo tempo que a banda sonora se torna mais percussiva, aumenta em cena a energia e o virtuosismo dos bailarinos (vestidos maioritariamente em tons de cinza, com macacões ou calças e camisas) que se vão apropriando de material coreográfico próprio e, em alguns deles, algo idiossincrático.
As imagens projectadas de um olhar de dentro de um comboio que percorre planícies e lezírias e se detém na Estação do Oriente (em Lisboa) levam o espectador a uma outra dimensão, mais humana, com árvores e água contidas nos limites do próprio ecrã. De vez em quando surgem um ou outro intérprete, Miguel Ramalho a solo e Gonçalo Andrade e Dylan Waddell em dueto, que transmitem uma certa “ordem masculina”, quase sempre presente nas obras de Roriz. Mas é com dois duetos em forma canónica – um à frente da grande moldura e outro atrás dela -, assinalados como sendo as personagens de Blimunda e Baltazar (roubadas ao Memorial do Convento) que o trabalho ganha uma dimensão mais emotiva e sentimental e, por conseguinte, mais próxima do espectador. As excelentes interpretações de Inês Ferrer e João Costa (na frente) e Tiago Amaral e Anyah Siddall (num plano recuado) revestiram-se de enorme sensibilidade e foram, em simultâneo, alimentadas por grande abandono emocional e notável destreza física. E a obra continuou com uma página de movimento de grupo totalmente masculino em uníssono e de outras formações, todos já calçados com botas.
E, enquanto o comboio imaginário continua rolando numa provável viagem e os bailarinos se vão abandonando em movimentos canónicos, verifica-se um hábil crescendo, tanto sonoro como visual. Por fim, a matilha que surge no início do bailado, já totalmente humana, parece abandonar o palco e entrar pelo ecrã adentro, enquanto nele se projectam imagens de formigas gigantes que, insensíveis a tudo o que se passa à sua volta, continuam no seu labor e na sua incessante busca neste mundo… e talvez num outro.
Esta interessante metáfora da vida humana, criada pela coreógrafa e baseada nas ideias que lhe transmitiram os escritos de Saramago, curiosamente, criaram um impacto muito maior nos espectadores do CCB que nos do Teatro Camões (na estreia), concluindo-se a soirée com um turbilhão de aplausos, deveras merecidos, para os artistas em cena e atrás da cortina.
Texto: António Laginha
fotos: Bruno Simão