COMBATES OU DANÇAS DOS MOUROS NO ALGARVE: UMA MEMÓRIA QUE SE DEVIA PRESERVAR

Segundo o Dicionário informal (https://www.dicionarioinformal.com.br/) entre muitos outros significados a palavra mourisca terá sido utilizada em Portugal para designar uma dança/pantomima executada por mouros desde os tempos em que, vindos do Norte de África, habitaram o lado mais ocidental (incluindo também o meridional) da Península Ibérica.

Mais tarde e na ausência dos muçulmanos – que terão abandonado definitivamente o país ou, eventualmente, se convertido ao cristianismo – continuou a designar-se por mouriscas todas as danças que integravam personagens vestidas com trajes que, na imaginação dos populares, apresentavam “características” mouras. Ora estes “sinais”, muito provavelmente pouco ou nada tinham a ver com os povos do Magrebe mas, acima de tudo, com uma certa ideia de exotismo. E, sendo algumas dessas danças executadas por homens que penduravam sinetas nas pernas e pintavam o rosto de negro, era crença popular que elas tinham afinidades com a cultura do Norte de África.

A palavra mouro (em castelhano, moro) deriva de mauri, um vocábulo já utilizado pelos romanos para designar a população berbere da Mauritânia. Quer os invasores – da Península Ibérica em geral e da  da região a que se chamou Garb al-andalus, em particular, que correspondia grosso modo ao território controlado pelos muçulmanos na época pós-romana – fossem de origem árabe ou berbere eram comumente designados por mouros uma vez que vinham, por via marítima, do Norte de África, onde a antiga Mauritânia estava localizada. Genericamente falando, a designação de mouro era aplicada a qualquer muçulmano, incluindo aos nativos convertidos ao Islão.

Apesar de terem sido expulsos do Algarve por D. Afonso III (1210-1279) o qual passou então a utilizar o título de Rei de Portugal e dos Algarves (note-se que Faro só foi conquistada aos mouros em 1249) a guerra contra os sarracenos, contudo, continuou por muito mais tempo na zona marítima do reino. Os infiéis já tinham chegado mesmo a deslocar-se por mar até à Galiza para pelejar em terras de Santiago de Compostela. Aquela urbe foi, inclusivamente, destruída pelo político e militar, Almançor, no dia 10 de Agosto do ano 997, que tudo mandou destruir respeitando apenas o sagrado sepulcro do apóstolo.

Os que não se converteram ao cristianismo ou não foram mortos pelos portugueses ter-se-ão transferido do “reino” de Xilb (Silves) para os “califados” de Sevilha e Córdova. Terminada a luta contra os “infiéis” o rei lusitano, curiosamente, cognominado o Bolonhês, só viu as fronteiras de Portugal estabilizadas em 1267, após terminado o longo conflito diplomático com Castela – através do tratado de Badajoz –, o qual determinou como fronteira entre os dois reinos o rio Guadiana, desde a confluência do Caia até à foz (em Vila Real de Santo António).

É sabido que os povos mouros deixaram um contributo assaz importante para a construção da identidade portuguesa em diversas artes e em muitos aspectos da própria vida quotidiana. Mais precisamente na zona meridional de Portugal, o Algarve – vocábulo com origem na expressão árabe الغرب (Algarbe) que significa “o oeste”, “o ocidente” – onde Silves foi uma forte referência cultural, designadamente a nível da literatura, mormente da poesia. Sendo o seu mais ilustre representante o famoso Ibne Amar (1031-1086) nascido em Silves (ou Estômbar), e que veio a ser primeiro-ministro da Taifa de Sevilha. Sem que se conheça com exactidão o motivo principal, foi posteriormente assassinado pelo seu protector, outro reconhecido poeta e político, nascido em Beja, Al-Mutamide (1040-1095).

A chamada “herança muçulmana” ainda hoje é visível nas paisagens algarvia e alentejana, num tipo de arquitectura alva e agarrada à terra, com pormenores estruturais bastante particulares, mantendo-se apenas alguns sinais de “verticalidade” nas torres sineiras de algumas igrejas (S. Lourenço de Almancil, no concelho de Loulé, é um exemplo de referência, sobretudo pela qualidade e beleza da azulejaria que cobre as suas paredes interiores) que, como se sabe, terão sido antigos minaretes de mesquitas existentes antes da conquista afonsina.

Naturalmente que a arquitectura urbana – arte de caraterísticas mais perenes – deixou fortes marcas em terras lusas sem contudo atingir o fulgor das mesquitas e palácios que ainda hoje se podem apreciar por terras andaluzas. O que não é de estranhar, já que os mouros só deixaram o país vizinho alguns séculos depois de terem sido “empurrados” do reino de Portugal e dos Algarves. É de referir que também na língua portuguesa ainda hoje se detecta um peso bastante substancial do chamado “legado árabe”, em muitos vocábulos, sobretudo começados pelas letras al.

Como seria de esperar, a nível de artes efémeras (leia-se artes cénicas e manifestações populares de contornos teatrais normalmente associadas a texto, dança e música) muito pouco nos restou da memória islâmica, tanto em Portugal como em Espanha. Curiosamente é em Inglaterra que as Morris Dances (moorish ou mourisco dances) têm maior expressão no continente europeu, sem se ter qualquer certeza se as suas raízes têm verdadeiramente origem africana. Sabe-se apenas que já existiam nos finais da Idade Média naquele território e que, eventualmente, poderão ter entrado na ilha através dos exércitos de John de Gant, Duque de Lencastre (1340 – 1399) [2].

Num espaço geográfico, o Norte de Portugal, encostado à Galiza (onde predominaram as influências celtas), as lembranças das gentes mouras serão quase tão ténues como as de um país fora da Península Ibérica, como é o Reino Unido. Onde, curiosamente, se pode hoje encontrar uma forma de morris dances muito similar às executadas pelos Pauliteiros de Miranda, no nordeste trasmontano, inclusivamente a nível dos trajes.

Porém, em algumas festas tradicionais em Portugal, em zonas da bacia do Douro – e outrora também no centro do Algarve – continuam a dançar-se as chamadas mouriscas ou combates dos Mouros.

 

A resistência da religião

O francês Émile Durkheim (1858-1917) [3] afirmou que “uma instituição humana não se baseia no erro e na mentira e por isso resiste” [4].

Assim, a religião não pode ser apenas um sistema de alucinações, mas é qualquer coisa de real. O fiel sente força e esta força é real. Eleva o homem acima de si mesmo e, segundo o mesmo autor, vem da força colectiva, que é a sociedade. Durkheim afirmou, mesmo, em 1912, que a religião sobreviverá à ciência. Todavia, a função especulativa da religião é um poder rival da ciência, sobre a qual a lei não exerce hegemonia. Provavelmente as teses de Durkheim contribuíram para explicar bem a resistência da religião e de alguns dos fenómenos a ela associados.

A resistência dos cultos pagãos na religião cristã também faz parte dos estudos de Durkheim (1912) que menciona na sua obra a absorção e assimilação de cultos exóticos pela Igreja Católica e escreveu que no folclore se encontram religiões desaparecidas e sobrevivências não organizadas ou formadas espontaneamente sob influência de causas locais. De facto, as mencionadas danças mouriscas – no caso particular de Pechão, associadas a uma data do calendário religioso – sobreviveram a experiências de contornos pagãos.

A razão para a assimilação de práticas culturais e/ou religiosas exóticas nas festas católicas e a sobrevivência de cultos antigos, pode também explicar-se pela seguinte hipótese formulada por outro francês, Maurice Halbwachs (1877-1945) [5] que escreveu:

les religions nouvelles ne réussissent pas à éliminer entièrement celles qu’elles ont supplantées, et, sans doute, elles ne s’y efforcent pas: elles sentent bien qu’elles-mêmes ne satisfont pas tous les besoins religieux des hommes, et elles se flattent, d’ailleurs, d’utiliser les parties encore vivaces des cultes anciens et de les pénétrer de leur esprit. (Halbwachs, 1994 [1925]: 182).

Os chamados “mediadores de tradições” e, mesmo, algumas autoridades eclesiásticas – no caso dos eventos em causa – recuperam do passado o que ainda estava vivo ou era capaz de viver na consciência do grupo. Assim, a memória dos sarracenos foi transformada no facto de protagonizarem os “maus” naqueles eventos, embora o seu aspecto já há muito tivesse deixado de corresponder à imagem estereotipada do pária (marginal) “descalço e sujo”.

Assim sendo, as populações que celebram festas religiosas com representações dramáticas de mouros, ainda devem ter a mesma noção de festa e sentir a mesma necessidade de entretenimento, como as gentes que criaram esses eventos, mesmo quando o aspecto formal das festividades já não corresponde às suas formas ancestrais. No caso das danças mouriscas, que curiosamente se perderam em muitos países europeus, nomeadamente nos germânicos onde ainda se conservam algumas “danças de espadas”, elas sobreviveram em Portugal.

O crítico de dança e estudioso do folclore luso, Tomás Ribas (1918-1999), aventou a hipótese de que as danças mouriscas europeias resultem de uma adaptação das danças dos mouros em voga na Península Ibérica nos séculos XV e XVI (Ribas, 1983 [1982]: 41).

Mas muitas outras questões continuam em aberto: seria a resistência das danças mouriscas na Península Ibérica consequência da sua origem geográfica? Ou da palavra “mouro” das línguas espanhola e portuguesa? Ou do facto de os muçulmanos terem marcado profundamente a história de Espanha e Portugal, e não tanto a de outros países europeus?

 

Sobrado, Penafiel e Braga, três casos singulares em Portugal

A vila de Sobrado situa-se no concelho de Valongo, a cerca de 25 quilómetros a Este do Porto. Já a cidade de Penafiel, fica a cerca de 50 quilómetros, na mesma direcção, enquanto Braga se localiza a uma distância semelhante mas para Norte. Genericamente falando, as duas primeiras localidades situam-se perto da bacia hidrográfica do rio Douro e a “cidade dos Arcebispos” já no sentido da fronteira com Espanha.

Uma dança com um nome inusitado, o Baile dos Ferreiros, executada por uma dúzia de homens munidos de espadas é particularmente efectiva e parte integrante da procissão do Corpo de Deus, em Penafiel. Assim como a Dança Mourisca, o Baile dos Turcos, o Baile dos Pretos e o Baile das Floreiras (a única dança feminina nesta lista). Os chamados Bailes do Corpo de Deus, constituem um elemento identitário de umas festas de cariz fortemente religioso.

Já as várias danças executadas pelos Mourisqueiros e os Bugios, que integram a festa de S. João Baptista, em Sobrado, são autónomas relativamente à procissão que também integra o andor de S. André, o padroeiro da vila.

A conhecida Dança do Rei David surge mais a norte como é uma das atracções das grandiosas festas do santo mais popular de Braga, o São João. De aspecto palaciano, actualmente é executada em cima de um carro que integra o cortejo Sanjoanino, por uma figura masculina central de coroa e capa, com uma lira na mão, acompanhada por doze músicos (violinistas, guitarristas e flautistas) que também esboçam alguns passos de dança.

Os dois eventos festivos em que as referidas actividades bailatórias se inserem são, portanto, o Corpo de Deus – festa móvel no calendário litúrgico – e os Santos Populares (festas juninas, como são denominadas no Brasil). Trata-se, pois, de representações coreográficas e teatrais enquadradas num esquema essencialmente religioso, no primeiro e no terceiro casos. E de carácter misto, com aspectos já muito mais pagãos do que religiosos, no segundo caso, mas de enorme importância histórica e antropológica no calendário das festividades portuguesas. Sendo, em particular, as chamadas “danças mouriscas” que neles se incluem, o que, genericamente, se pode designar por um género pan-europeu.

A Igreja Católica serviu-se das representações dos “mouros” nas suas festas para exibir os “infiéis” e tomou as lutas entre cristãos e mouros, inspiradas pela Reconquista e Cruzadas, como exemplo para o confronto entre as diferentes religiões. “Todavia, as representações nem sempre tiveram o mesmo estatuto nas festas e procissões religiosas e até foram interpretadas de forma diferente ao longo da história. Os fenómenos culturais em presença confrontam os estudiosos com a revitalização, reconstrução e invenção da tradição, porque se reduziu a sua importância a um ou vários momentos da história. Assim, símbolos velhos podem aparecer em contextos diferentes com significações diferentes. Tradições que parecem desaparecer em certas épocas, podem reaparecer em outras”. [6]

Nota-se, a título de exemplo, que a procissão do Corpo de Deus sobreviveu em todo o seu esplendor em Penafiel, onde é a maior festa do ano litúrgico. Porém, coloca-se a questão de saber se esta procissão se terá mantido por causa da persistência popular ou por decisão clerical. Em Sobrado, o roubo da imagem do S. João está no embasamento dramático das festas, cuja narrativa vai muito além desse detalhe no intrincado enredo da lenda que sustenta todo o evento. No caso da procissão do Corpo de Deus, ela nunca se deixou de realizar em Penafiel embora tenham desaparecido, entre outras manifestações, todas as danças dramáticas, com excepção do supracitado Baile dos Ferreiros, o qual, paradoxalmente, aparece ligado à figura de S. Jorge.

A procissão do S. João de Braga é também um exemplo da reconstrução da tradição em que se perdeu a dança mourisca quando esta foi transformada na Dança do Rei David por um padre no século XVII (segundo a informação dos folhetos da “Festa de S. João” distribuídos pela Câmara Municipal de Braga) numa cidade em que a autoridade eclesiástica ainda mantém muita da sua autoridade.

Em Sobrado, por outro lado, os mourisqueiros foram, nas últimas décadas, transformados nos “maus”, ao contrário dos “bons”, os bugios. Embora sejam os primeiros que aparecem com os trajes mais aprumados, ao contrário dos bugios, de aspecto um pouco mais caótico. Aliás, no caso das Bugiadas, os “bons” não vencem os “maus”, porque é por intervenção da Bicha-Serpente (serpe) que os “maus” são expulsos do terreiro. Neste caso, a manipulação da memória deve-se provavelmente mais aos textos escritos e aos discursos dos indivíduos que reinventaram a tradição, do que a outra qualquer directiva específica. Esses discursos são transmitidos, em Sobrado, por altifalantes na própria festa do S. João, o que revela a sua importância e o impacto que se procura exercer nos espectadores. No caso dos forasteiros, se não conhecerem os detalhes da narrativa, não entendem a acção que é complexa e, por tal, necessitam da ajuda de um narrador que se encarrega de projectar sonoramente o enredo.

 

As mouriscas de Pechão

O facto de Lucile Armstrong ter publicado (em 1948) um pequeno manual de dança folclórica intitulado “Dances of Portugal” editado pela Max Parrish & Company, de Londres, em 1948 (que se pode inserir na área da literatura do folclore português de que são autores maiores em Portugal, Pedro Homem de Mello e Tomás Ribas) ter mencionado as Danças de Mouros de Pechão, não será assim tão improvável, presumivelmente devido ao seu conhecimento das mouriscas do Minho e, sobretudo, das morris dances do seu país.

Alguns anos antes – durante o Estado Novo – a russa Julia Sazonova [7], que viveu dois anos em Portugal (1940-42), já tinha tentado fazer um levantamento das danças folclóricas portuguesas. Porém, o projecto (que terá despertado alguma curiosidade em António Ferro, o ministro do Secretariado para a Propaganda Nacional, acabou por fracassar e a sua obra Le Portugal (Voyage Choréografique) nunca chegou sequer a ser impressa. A verdade é que na sua versão datilografada – em que dedica um capítulo ao Algarve e outro ao Minho – Sazonova não refere quaisquer danças de mouros naquelas duas províncias.   

Na opinião de Lucile Armstrong, na supracitada publicação sobre folclore português – dada à estampa sob os auspícios da Royal Academy of Dancing e da Ling Physical Education Association, do Reino Unido -, “Portugal é tão rico em danças rituais sazonais como qualquer outro país da Europa e possui um dos melhores e mais completos exemplos desta extraordinária mescla, por exemplo a dança dramática do género Mourisca”.[8] E cita, sob o tema Danças Rituais, o “Midsummer Day” (celebração da chegada do Verão – “veranum tempus” – com raízes na época pré-cristã na Europa pagã) na aldeia de Sobrado; as danças dos pauliteiros de Miranda (Trás-os-Montes); a dança do Rei David, em Braga; uma dança de espadas, em Lisboa, e danças de pau (ensebado) e da pinhata (pela altura do Carnaval), também no centro do País.

Descendo para Sul, Armstrong referiu no Alentejo a existência de danças de roda em pares para “pernas cansadas” que tendo caminhado longamente, “não estavam inclinadas para saltar”. [9] Já no Algarve “terra de sol intenso” em que “o calor gera temperamentos fogosos e danças rápidas” (referindo-se ao corridinho como um “tipo de polca circular em pares”), a escritora deu como exemplo a aldeia de Pechão, como lugar de prática de uma outra espécie de dança: as mouriscas.

Por registos encontrados, sabe-se que aquele povoado já existia como freguesia em 1593 e que pertencia ao Termo de Faro, de qual dista cerca de sete quilómetros. Só em 1826 é que foi integrado no município de Olhão, que se localiza, sensivelmente, a metade daquela distância. Tem 20,31 quilómetros quadrados de área e, pelos censos de 2021, cerca de 3 890 habitantes. A sua principal actividade continua a ser a agricultura. Pechão é uma aldeia onde abunda a flora algarvia do barrocal, designadamente amendoeiras, alfarrobeiras, figueiras e laranjeiras. O monumento mais antigo e importante é a igreja matriz situada no ponto mais alto da localidade. Caso algo particular, em plena rua e adjacente ao antigo cemitério no largo da igreja, existe uma pequena “capela dos ossos” construída no século XIX.

Não deixa de ser surpreendente que a escritora tenha afirmado que “ao longo da costa, em direcção a Espanha, as memórias dos mouros prevalecem” e, por tal, cita o exemplo das “Danças dos Mouros de Pechão, representadas em Setembro, provavelmente como uma das danças cerimoniais Mouriscas da Península, danças-batalhas entre cristãos e mouros”. [10]

Tendo conhecimento das inúmeras danças e festas religiosas do Norte de Portugal (que considera mais ricas sobretudo a nível de trajes por a pobreza na região do sul ser mais evidente), a escritora partiu do princípio que em (antigas) terras de árabes teria havido mais material coreográfico para estudar e, com o exemplo dado, promoveria Pechão à categoria de terra de danças (muito antigas) e de tradições seculares árabes.  Porém, a realidade veio a provar, justamente, o contrário. Não só o evento de Pechão, designado pela população por “Combate dos Mouros”, se terá transformado numa espécie de auto / entremês, como no sul de Portugal, tanto quanto se sabe, as representações que eventualmente existiram ter-se-ão perdido. Daí o interesse em “registar” o que ainda resta na memória de uns poucos uma vez que tudo leva a crer que, infelizmente, em breve não passará de uma ténue memória. Restaram apenas na aldeia algumas danças folclóricas de interesse reduzido, denominadas “danças tradicionais de Pechão”, cuja origem se desconhece.

Tal como Lucile Armstrong, também Tomás Ribas (1918-1999), que viveu e leccionou alguns anos em Faro, na sua obra Danças populares portuguesas [11] não foi muito conciso na definição de danças mouriscas. Segundo o próprio, “eram na origem danças de mouros que participaram nas festas da Igreja ao lado dos judeus e foram, mais tarde, transformadas em lutas entre cristãos e mouros. As danças dos mouros, transformaram-se em danças “contra” os mouros e acabam por, progressivamente, adquirir contornos de jogos pírricos e danças de espadas, em que os infiéis são obrigados a capitular perante as “hostes” cristãs, como uma mais ou menos subtil humilhação após a vitória dos portugueses. A expressão “dança mourisca” utilizou-se, provavelmente, em qualquer representação em que aparecessem mouros numa dança e que podiam, mesmo, ser cristãos de cara pintada de preto. Qual era, porém, a necessidade de incluir estas danças nas festas religiosas? Tal não se sabe… Talvez apenas pelo facto de, com a sua excentricidade, atrair mais gente para essas festas populares.

No que respeita às músicas que as acompanhavam, é hoje difícil saber como é que soavam originalmente aquelas danças, porque a forma musical das mouriscas seria uma marcha guerreira ou uma dança palaciana, cuja forma, provavelmente, não nos recorda nada da música de origem árabe que hoje conhecemos. Também não se sabe como era a coreografia das diversas danças dos mouros. Apenas por referências de alguns autores, ficámos a saber que a Igreja Católica assimilou, a partir da Idade Média, costumes dos mouros, dos judeus e, mesmo, dos “negros” (Tinhorão 1988), inserindo-os nas suas festas e principalmente nas procissões do Corpo de Deus.

Sabe-se, a propósito, que a chamada Dança dos Turcos era a mais apreciada tanto pelos nativos como pelos visitantes das festas em Penafiel e, quando aquela se perdeu há cerca de meio século, o Baile dos Pretos ganhou esse estatuto. Também as famosas – e já citadas – danças dos pauliteiros de Miranda (do Douro), no Nordeste de Portugal, são danças originalmente em forma de lutas de espadas que, por uma questão de facilidade e da segurança dos próprios intérpretes, foram substituídas por pequenos paus cilíndricos.

Voltando ao Algarve e aos eventos de Pechão, o jornal Correio do Sul, “semanário de informação e propaganda da província do Algarve” que se publicou entre 1920 e 1981, deu à estampa na sua edição de 24 de Novembro de 1966, pela pena de D. Mariana Amélia Machado Santos, um texto pitoresco – e algo saudosista e fantasioso – com o título “Em louvor de Pechão”. Nele, recordando o seu avô (que se presume ter sido natural daquela aldeia), a jornalista então residente na capital portuguesa, começou por louvar as qualidades humanísticas do seu ascendente e, de seguida, lavrou (de memória) uma curiosa descrição da vigília de S. Bartolomeu em Pechão, que lhe havia sido narrada por aquele ente querido.

Era Agosto. Havia um luar claro, como a luz da madrugada O povoléu aglomerava-se à volta dum palanque, armado em jeito de castelo.

De repente, ao dar meia-noite, aquela hora em que as mouras encantadas saem para matar saudades ao luar dos tempos imorredouros dos seus reinados de outrora, foguetões subiam ao ar e estralejavam, caindo em estrelas cadentes, a brilhar no seu imaculado!… Era o sinal!

No castelo, mouros de turbante e albernoz branco faziam alarido, e eis que se aproxima uma barca iluminada repleta de guerreiros à moda antiga.

Dava-se o combate em jeito de dança, aos gritos com música a acompanhar, e, da refrega, eram sempre os mouros os vencidos e os cristãos saíam vencedores.

Vinha gente das redondezas atraídas por aquele combate anual de uma nave lendária contra um castelo imaginário. Em terra onde não havia mar algum. Que fossem mouros os do castelo ou os da barca, isso não importava; o que era certo é que saíam vencidos e ali se comemorava uma tradição popular, uma lenda multissecular e regional.” [12]

Pelos poucos registos encontrados, ainda assim pode concluir-se que muita coisa se foi alterando ao longo dos séculos na própria configuração do evento: uma batalha fictícia protagonizada por dois grupos, um exército de cristãos atacante e um conjunto de infiéis protegidos por umas improvisadas muralhas. Os intérpretes da contenda, “terão começado por se vestir, em casa, chegando já trajados ao átrio da igreja. Nos anos mais recentes, o local de reunião dos participantes transferiu-se para a casa paroquial ou para as instalações da Junta de Freguesia. Actualmente já não existem quaisquer peças de vestuário utilizado nos eventos nos referidos locais nem mesmo em casas particulares. Até porque, segundo relatos de alguns dos últimos “guerreiros”, não passavam de peças de tecido pobres e pouco elaboradas. Muitas vezes feitas de lençóis velhos e sacas de serapilheira usadas que, provavelmente, ainda eram recicladas depois dos eventos.

“O conjunto dos mouros – vestidos de tecido de algodão branco – na hora marcada deslocava-se discretamente para o adro da igreja de S. Bartolomeu e colocava-se dentro do improvisado castelo de papel pintado, a imitar as pedras das muralhas. Os restantes participantes entravam a dançar (de improviso e com algum estrondo) ao som de um ou mais harmónios [13] e dirigiam-se para o castelo onde o rebentamento de um morteiro, indicava o início da luta – como se de um tiro se tratasse – e o “fogueiro”, vestido de fato-macaco, dirigia-se para o castelo com uma espada em riste liderando o cortejo” [14].

Atrás, a barca cheia de cristãos aparecia de surpresa no largo (vinda do lado do cemitério, nas costas da igreja) para atacar os infiéis. Era a figura mais proeminente, o comandante do barco, que começava por atirar setas aos inimigos, iniciando-se, assim, o enérgico ataque às muralhas. Dos testemunhos recolhidos, não foi possível estabelecer uma ligação de causa-efeito entre o ataque e a respectiva defesa. Isto é, em outros combates noutras terras, a motivação dos cristãos para atacarem os mouros tem um objectivo marcadamente religioso e prende-se com a libertação ou a conquista de relíquias de santos católicos ou pela simples posse da sua imagem, o que não acontecia nos domínios de S. Bartolomeu de Pechão. Se bem que todo o percurso da festa se desenrolava à volta do templo, circunscrevendo-se a mesma a uma geografia de carácter eminentemente religioso.

“Cristãos no solo e mouros em cima do palanque (dentro de um castelo árabe simulado, constituído por uma estrutura de canas ou madeira forrada a papel pintado a imitar paredes em pedra) perfilavam-se como ferozes “inimigos”. Os primeiros chegavam em cima de uma barca (carroça transformada em barco empurrada por outros participantes) vestidos de serapilheira castanha, alinhavados com fio de juta, e os mouros atrás das muralhas surgiam, basicamente, ‘enrolados’ em lençóis”. [15]

Quanto ao texto, debitado por dois dos intérpretes, era bastante fácil e muita gente até o sabia de cor. Porém, mais importante do que as palavras gritadas de um e do outro lado pelos pelejantes era a despretensiosa dramaturgia do próprio espectáculo, que fazia as delícias dos pechanenes e dos forasteiros.

Assinale-se, do que se conseguiu recolher, o diálogo de abertura entre o (capitão cristão) [16] Português e o (rei) Mouro [17]:

Português – Ó do barco!
Mouro – Que deseja?
Português – Eu, capitão deste escaler, [18]  vindo dos mares do Norte e tendo que cumprir a minha missão, às ordens do Comando Superior.
Mouro – Que deseja?
Português – Desejo falar a V. Real Majestade, El-Rei Árabe
Mouro – Espere um momento

Rei Mouro – Quem é?
Soldado Mouro – Não sei. Só sei que é um escaler armado e tenta penetrar em território nosso e onde V. Real Majestade governa e domina.

Mouro – Ó do escaler?
Português – Pronto!
Mouro – Quem te mandou penetrar em águas que por direito e limites não te pertencem e penetrares em território meu?
Português – Foi o temporal que nos trouxe até esta paragem. […]

 

Não sendo muito extenso, o diálogo não duraria mais de uma meia hora, terminava com a fria ordem do rei (mouro):

Aprisionem o barco.

Ao que o Capitão (cristão) ripostava: E nós vamos passar.

Rei: Não passarás.

Capitão:  Oh rapazes !

               Prontos ?

               Fogo.

 

No final, quando a palavra “fogo” era gritada a plenos pulmões pelo capitão da barca, iniciava-se o pretenso e aguerrido combate para gáudio de toda a assistência.

No final, com a maioria dos mouros já por terra, os soldados cristãos subiam para o palanque e ao chegar ao castelo ateavam-lhe fogo. Entretanto, os mouros derrotados já tinham saído cabisbaixos pelas traseiras da frágil estrutura em chamas, enquanto se ouvia o rebentamento de algumas bombas de pólvora seca colocadas dentro do castelo para simular o som de alguns tiros.

Depois da completa destruição do castelo, reduzido o papel, canas e madeira a cinzas, e da ‘fuga’ dos infiéis, o rei Mouro e o capitão Português, sozinhos sobre a plataforma, davam amistosamente as mãos em frente do público para que não restassem dúvidas de que se tratava de uma simples representação. Até porque todos os participantes na contenda eram da terra e, muito provavelmente, bons amigos”.[19]

Sabe-se que o “combate” foi, há muito, por interferência eclesiástica, integrado nas tradicionais festas anuais de Pechão que decorriam no primeiro domingo e segunda-feira de Setembro. A data terá sido escolhida por uma questão muito prática e decorrente do calendário agrícola. Tratando-se de uma zona com muitas famílias de produtores de alfarroba, figo e amêndoa, a apanha desses frutos só estava concluída no final do Verão, pelo que as pessoas mais religiosas, após a venda, poderiam aplicar alguns dos seus rendimentos na festa e nas respectivas oferendas.

Já no século XX, mais precisamente no início da década de 70, o paradigma alterou-se pois, sendo uma região como muitas outras na província do Algarve com um grande número de famílias emigradas, as comissões de festas optaram por alterar as datas dos festejos fazendo coincidir os eventos com o período de férias. Assim as Festas de Pechão passaram a realizar-se no mês de Agosto, frequentemente no dia 24, mantendo, nos primeiros anos o domingo e a segunda-feira. Contudo, algum tempo depois, passou-se para sábado e domingo, para coincidir com o normal fim-de-semana.

O Combate dos Mouros, que servia de epílogo às solenidades, terminava formalmente com o “arder do castelo”. Mas o fogo que começava no solo prolongava-se pelo ar – como é tradição na maioria das festividades laicas e religiosas de Portugal – com cada vez mais vistosas sequências de fogo-de-artifício.

A fim de trazer um pouco mais de alegria, diversão e colorido às festas de S. Bartolomeu – que saía em procissão nas manhãs de 24 de Agosto – as comissões de festas decidiram agregar ao evento outros atractivos tais como provas de ciclismo, concursos de pau ensebado, torneios de malha e exibições de ranchos folclóricos (com danças tradicionais da região), nos quais, curiosamente, se incluía um grupo de pauliteiros, que, aliás, parece ser único que há conhecimento nas últimas décadas em terras meridionais de Portugal.

Os vários conjuntos de danças eram, geralmente, acompanhados por um acordeonista (ou dois) e tocadores de cavaquinho, bandolim, viola e ferrinhos.

Pechão, ao logo da sua história recente, teve vários grupos de dança dita folclórica. De um modo geral, parece ter-se mantido uma determinada matriz nas lista das danças por eles apresentadas e que era composta pela “Dança dos Velhos” – protagonizada por um grupo misto de contornos humorísticos que terá tido origem na aldeia e, mais tarde, foi adotada pela vizinha freguesia de Quelfes – os “Pauliteiros de Pechão” – grupo composto por 12 crianças do género masculino – a “Dança da Misteriosa” – em que um homem dança com uma boneca de trapos – as “Danças Tradicionais” – executadas por pares – e o citado “ Combate do Mouros”, uma “dramatização histórica” da conquista de um “castelo infiel” por um grupo de “cruzados cristãos”.

A Igreja Católica celebra no dia 24 de Agosto a morte de São Bartolomeu – exactamente dois meses depois do dia de S. João -, um dos doze apóstolos. É de referir que a Festa de S. Bartolomeu de Esposende, santo homónimo do de Pechão, é uma das mais concorridas e celebradas no Norte de Portugal.

Na qualidade de apóstolo, Bartolomeu pôde acompanhar a missão de Jesus na terra, no seu dia-a-dia e os seus milagres, ouvindo os seus ensinamentos e testemunhando a sua ressurreição.

De acordo com a tradição, o apóstolo teria evangelizado a Índia, passando pela Arménia, local onde conseguiu a conversão do rei Polímio, da sua esposa e várias outras pessoas. Este facto gerou a inveja de sacerdotes pagãos que instigaram o irmão de rei, Astiages, a matar Bartolomeu por esfolamento. Porém, o santo não morreu ao ser esfolado, uma vez que acabou sendo decapitado, segundo reza a tradição oral, no dia 24 de Agosto do ano 51 dC.

A igreja Matriz de São Bartolomeu, em Pechão, data provavelmente do século XVIII.

 Notas finais

Apesar de existirem alguns estudos sobre “danças mouriscas” em festas religiosas – destacando-se o da austríaca Barbara Lage, que se socorre das teses de E. Durkheim (1912 [1960]), M. Halbwachs (1968 e 1994), H. Bergson (1959) e P. Connerton (1989) para agregar à palavra “mouro” uma simbologia “religiosa”, designadamente a utilizada pela Igreja Católica, e abordando o que delas resta em Braga e Penafiel  e Sobrado  – não se encontrou qualquer ensaio estruturado que incluísse as de Pechão. Uma aldeia “típica” do barrocal algarvio onde hoje apenas se detecta uma pálida ideia do que terão sido, num passado mais ou menos longínquo, essas interessantes práticas teatrais e coreográficas de raiz popular.

Também não foram encontradas quaisquer referências literárias aos “combates” na freguesia de Quelfes (que parece ter herdado a “tradição” de Pechão o “ensaiador” de Pechão que levou consigo as suas “danças) ao contrário, na aldeia de Santa Catarina da Fonte do Bispo (pertencente ao concelho de Tavira), onde há menos de uma década ainda se realizaram os “combates de mouros”, existem alguns “vestígios” e uma memória um pouco mais perene.

A categoria das “danças mouriscas” do Algarve, do ponto de vista dos ritos comemorativos, remetem-se para um passado religioso (aliado ao Cristianismo e ao Evangelho) e um passado histórico, que se prende com a presença árabe e a conquista das povoações muçulmanas pelos Portugueses.

A essa “memória histórica” há que juntar a “memória colectiva” que chegou até nós (já muito fragilizada) através de um evento performativo-religioso pontual que mantinha viva uma tradição que se tem vindo a desvanecer.

Referindo-se ao Algarve, o etnógrafo José Leite de Vasconcelos, na obra Etnografia Portuguesa, p. 619, volume III (reeditada em 1980) assinala que “…há também o combate simulado de Mouros e Cristãos, em castelos feitos de madeira e papel, ou assentes no solo, ou armados em cima de carros…” em Santa Catarina da Fonte do Bispo. Onde “… já anteriormente se exibiam danças de velhos, de crianças e de pastores” que estiveram presentes na festa de 1916 em honra de N.ª Sr.ª das Dores (como relata o Jornal “Povo do Algarve”, de Tavira, de 17-08-1916).”

Já Arnaldo Casimiro Anica refere na página 105 da sua Monografia da Freguesia de Santa Catarina da Fonte do Bispo, Edição da sua Junta de Freguesia (2005) que “…É de crer também que o luzimento atingido pelas festas em honra de N.ª Sr.ª das Dores desta freguesia esteja diretamente relacionado com a obrigação estipulada na carta régia de 30-08-1813 de se empregar toda a receita do terrado da Feira no culto da imagem da mesma Senhora. E daí que os festeiros dela tivessem passado a incluir no programa, de vez em quando, a dispendiosa farsa conhecida por “combate dos mouros” que, mais antigamente, costumava figurar na cidade nas festas de receção aos monarcas, como aconteceu em 1573 quando da visita a Tavira de El Rei D. Sebastião”. Sabe-se que o jovem monarca partiu de Faro em direção à cidade de Tavira e percorreu cerca de quatro léguas “até chegar a uma igreja da invocação de Nossa Senhora da Luz, a uma légua de Tavira, onde na cidade o esperavam a gente de cavalo, e seriam 100, muito bem concertados; e muitos deles à mourisca, e todos com suas lanças e adargas, e sete bandeiras de Ordenança, as quais, antes de chegar El-Rei um pedaço, fizeram sua salva muito bem-feita”.

Segundo Marco Sousa Santos, na Breve história das Irmandades, confrarias e mordomias de Loulé (séculos XVI, XVII e XVIII), Câmara Municipal de Loulé (2021) “A par da música e do canto, há notícia documental de as festividades religiosas organizadas pelas confrarias de Loulé incluírem também as denominadas “danças”, isto é, sequências de passos cadenciados comumente levados a cabo com acompanhamento musical. No ano de 1665, por exemplo, a Irmandade das Almas da igreja de São Clemente despendeu, por ocasião da sua Festa anual, 620 réis com “uma dança de mulheres” e mais 2.000 réis com “uma dança de homens”.

Sem quaisquer documentos fidedignos que possam estabelecer alguma analogia entre “danças de homens” e “combate de mouros” no concelho de Loulé, é muito provável que tanto no centro do Algarve como no Barlavento e no Sotavento, tivessem existido durante séculos eventos de origem simultaneamente pagã e religiosa “em espaços públicos, nomeadamente nos adros das igrejas ou nas praças e ruas por onde passavam os cortejos e procissões, mas não no interior dos templos”, uma prática que estava oficialmente proibida desde a Idade Média.

Ainda assim, “as danças seriam habituais na maior parte das festividades levadas a cabo na vila (Loulé), inclusive naquelas que não estavam diretamente sob a alçada das Irmandades, como era o caso de algumas procissões pascais ou da procissão anual do Corpo de Deus, cuja organização recaía sobre a câmara e sobre os juízes dos diferentes ofícios mecânicos. A esse respeito, veja-se como a 4 de abril de 1637, por ocasião da “procissão da Páscoa”, os vereadores mandam notificar os juízes dos ofícios para “que façam a finta costumada para as danças e os mais oficiais vão com seus ofícios como vão nas outras procissões” [21], ou ainda como na primeira metade do século XVIII, nos livros da Câmara de Loulé se inscrevem os termos relativos à nomeação das pessoas que deviam tomar parte na procissão anual do Corpo de Deus, incluindo quem devia levar os andores, as figuras processionais e os estandartes, mas também quem devia ficar responsável pela “dança”, obrigação esta que invariavelmente recai sobre o juiz do ofício dos moleiros. [22]

Devido às circunstâncias apontadas, o presente trabalho acabou por não se revelar muito elucidativo em termos coreográfico-musicais já que apenas se conseguiram informações esparsas de uns poucos intervenientes que outrora participaram nos combates e se lembram de algumas passagens das “festas”. Lamentavelmente nada mais se conseguiu recolher no local ou em povoações vizinhas.

Contudo, poderá ter deixado em aberto outro tipo de estudo sobre os dois eventos, também referidos em 2006 na obra Natal no Algarve – II”, creditada aos irmãos gémeos e padres, José da Cunha Duarte e Afonso Cunha. E que são os supracitados combates de Quelfes, povoação muito próxima de Olhão – para onde se terá mudado o “ensaiador” de Pechão que levou consigo as suas “danças” – e, sobretudo, os de Santa Catarina da Fonte do Bispo.

 

NOTAS:

[2] Príncipe inglês (era o quarto filho do rei Eduardo III e foi pai de Henrique IV, ambos de Inglaterra), chefe militar e estadista, era um dos homens mais ricos e influentes da sua época. Nascido em Gant (Bélgica) era também tio do rei Ricardo II e pai de Filipa de Lencastre, fruto do primeiro dos seus três casamentos com uma prima, Branca de Lencastre (1359). Em 1386, entrou pela Galiza com o intuito de invadir o reino de Castela. No início do ano seguinte celebrou uma famosa aliança com D. João I de Portugal, tendo oferecido a mão da sua filha mais velha, Filipa, para selar esse acordo. Assim sendo, John of Gaunt foi o avô dos seis príncipes portugueses que formaram a chamada “Ínclita Geração”, referenciada por Camões em Os Lusíadas.

[3] O sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917) estabeleceu a sociologia como disciplina a académica e é considerado como um dos arquitectos das ciências sociais, juntamente com Karl Marx e Max Weber.

[4] Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/%C3%89mile_Durkheim.

[5] Maurice Halbwachs (1877 –1945) filósofo e sociólogo francês da escola durkheimiana, escreveu particularmente sobre o nível de vida do operariado e criou o conceito de memória colectiva.

[6]  Alge, Barbara (2006), A memória colectiva religiosa em danças dramáticas de Penafiel, Sobrado e Braga, Lisboa, Colibri.

[7] Julia Sazonova (1884-1957) foi uma escritora judia russa – embora baptizada na Igreja Ortodoxa Russa – que vivia em Biarritz com o seu filho Dmitri, aquando da invasão nazi em França. Tinha sido colaboradora da famosa La Revue Musicale (cerca de uma década) e conseguiu um visto de três meses para si e para o filho, emitido pelo famoso cônsul de Bordéus, Aristides Sousa Mendes (1885-1954). A 13 de Maio de 1940, deixou a França e estabeleceu-se em Lisboa, onde conheceu António Ferro, ministro do governo do ditador Salazar. Aristides foi exonerado e demitido dos serviços consulares em Junho de 1940 e Sazonova permaneceu em Portugal mais uns dois anos, onde deu conferências no Conservatório Nacional e na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. A expensas do governo Português viajou pelo país visitando terras com grupos folclóricos e celebrações populares a fim de escrever uma obra sobre o folclore nacional. Apesar dos seus denodados esforços, faleceu nos Estados Unidos da América sem alguma vez tivesse visto o seu trabalho publicado. 

[8] Lucile Armstrong, Dances of Portugal, London, Max Parrish & CO Limited, 1948, p.13.

[9] Lucile Armstrong, acentua na página 12, o facto das danças alentejanas – ao contrário das ribatejanas e algarvias – serem da categoria de “danças baixas”.

[10]  Armstrong, Lucile p. 12.

[11] Ribas, Tomás Danças populares portuguesas. Biblioteca Breve, Vol. 69, [1.” edição 1982], Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa Ministério da Educação e das Universidades, p. 43.

[12] Escrito em Lisboa a 4 de Novembro de 1966, e publicado a 24 do mesmo mês no Correio do Sul.

[13] Embora não se tratasse de uma condição pré-estabelecida, segundo alguns relatos, em alguns dos festejos o grupo de assalto ao castelo trazia consigo um conjunto alargado de músicos para, desse modo, aumentar a dinâmica do evento.

[14] Entrevista com Paulo Vasco Salero, João Cesário Brás, Emiliano Charneca e Osvaldo Granja, Pechão, 2018.

[15] Entrevista com Paulo Vasco Salero, João Cesário Brás, Emiliano Charneca e Osvaldo Granja, Pechão, 2018.

[16]  Sendo as palavras almirante e alferes de etimologia árabe é curiosa a utilização no diálogo do vocábulo capitão.

[17] Duarte, José da Cunha e Cunha, Afonso (2006) Natal no Algarve II – teatro, São Brás de Alportel, p. 267.

[18] Bote, batel ou canoa. Pequena embarcação, geralmente a remo, que serve para transbordo de mercadorias nos navios ou para pequenos serviços no mar.

[19] Entrevista com Paulo Vasco Salero, João Cesário Brás, Emiliano Charneca e Osvaldo Granja, Pechão, 2018.

[20] Fonte: http://aarlapa.blogspot.com/search/label/Combate%20dos%20Mouros.

[21] AHMLLE, Livro de atas da vereação da Câmara de Loulé (1637-1640), fólio 4.

[22] AHMLLE, Livro de atas da vereação da Câmara de Loulé (1724-1727), fólios 167 e 167v; Livro de atas da vereação da Câmara de Loulé (1727-1729), fólios 58v e 59; Livro de atas da vereação da Câmara de Loulé (1724-1727), fólio 241.

[23]  Duarte, José da Cunha; Cunha, Afonso (2006), Natal no Algarve II – teatro, São Brás de Alportel, p. 259.

Published by Antonio Laginha

Autoria e redação

António Laginha, editor e autor da maioria dos textos da RD, escreve como aprendeu antes do pretenso Acordo Ortográfico de 1990, o qual não foi ratificado por todos os países de língua portuguesa.

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