“Porgy e Bess”, uma ópera na abertura!
A Bienal de Dança de Lyon, na sua XIV edição – a última sob a batuta e o imenso entusiasmo de Guy Darmet – abriu (inesperadamente) com uma ópera. Ou nem tanto!
É que a co-encenadora, Dominique Hervieu (com o coreógrafo José Montalvo) irá suceder a Darmet na Casa da Dança de Lyon e, por arrastamento, na direcção da próxima bienal, em 2012.
A peça escolhida, e acolhida no mais antigo teatro da cidade, a velha (e ultra moderna após remodelação) ópera, foi “Porgy e Bess” de 1935, numa criação de 2008. Um trabalho na senda de “Bom Dia Mr. Gershwin”, estreado na anterior bienal e que já se apresentou em Portugal, na Culturgest.
Desde logo, há que referir que a dupla Montalvo-Hervieu – actualmente à frente do teatro Chaillot, em Paris – teve o magnífico contributo de um notável naipe de cantores, quase todos negros ou o enredo não se passasse na carolina do Sul (USA) e encaixou faixas dançadas em tudo quando foram interstícios musicais que, entre árias, dão o “ambiente” à própria peça.
A fórmula, com imagens grandiosas projectadas atrás da acção, é a mesma que a dupla inventou há anos e que fez a delícias dos amantes da dança em todo o mundo em peças como “Paradis” e o “Jardim de Ito Ito”… que também passaram por Lisboa.
Se funciona bem numa encenação operática? Umas vezes sim e outras nem por isso! Quanto aos bailarinos, num registo essencialmente hip hop, também umas vezes ajudaram a prolongar no espaço a acção e outras vezes mais parecia que a enchiam em demasia o palco. Em muitas cenas de conjunto, o que sobrou em agitação cénica, faltou em atmosfera tipicamente americana.
A orquestra da Ópera de Lyon, dirigida por William Eddwins fez jus à atractiva música de George Gershwin e, em todas as récitas – como é hábito – o magnífico publico leonês não regateou aplausos ao brilhante conjunto de artistas.
Nijinsky e Maillot, uma dupla de sucesso
A primeira companhia de peso a apresentar-se na Casa da Dança, foi o Ballet de Monte Carlo (BM), sob a direcção do francês Jean-Christophe Maillot.
Sob inspiração do centenário da criação dos Ballets Russes, em 2009, a companhia monegasca de que fazem parte dois artistas portugueses – Bruno Roque e Vanessa Henriques – trouxe a Lyon a reprodução de “A Sagração da Primavera” de Nijinsky e, a complementar o programa, a primeira parte de uma peça de Maillot, “Altro Canto”.
A dançadíssima “Sagração” – que a nossa Companhia Nacional de Bailado também tem em reportório mas se “esqueceu” de dançar em 2009 – que na data da sua estreia em 1913 fez o maior escândalo da história do bailado, hoje é uma peça quase anódina. Porque se os londrinos Milicent Hodson e Keneth Archer conseguiram reproduzir a cenografia e a maioria dos passos da obra, o seu espírito e “alma” (por mais bem executada que seja) perderam-se definitivamente. Hoje vê-se suor em cena quando a excitação fica pelos bastidores. Um farrapo de história sem glóbulos vermelhos, com figurinos exóticos e uma proposta ritualística (raparigas virgens com ar de índias apaches dançando para pedir chuva acompanhadas por velhos e novos pastores barbudos das estepes eslavas) que nada nos diz 97 anos após a sua conturbada criação. Embora os bailarinos tivessem, de um modo eficaz, distribuído para a plateia a coreografia proposta, por vezes, a coisa atingiu contornos algo “aeróbicos”! Mas esse não é um defeito da companhia do Mónaco, que se apresentou disciplinada e tecnicamente segura, é mesmo um problema de reconstrução de uma obra de arte intemporal mas que não funciona ao nível da fotocópia… Seja qual for a companhia hoje esta dança exibe um ar muito bem comportado e certinho.
Quanto a “Altro Canto”, uma proposta de inspiração religiosa – a escolha musical vai de Monteverdi a Marini, passando por Kapsberger – seria um excelente contraponto à obra de Nijinsky-Stravinsky se a coreografia fosse bem mais inspirada. Uma vez mais os artistas do BM apresentaram-se focados e com grande profissionalismo, defendendo um trabalho morno e sem grande apelo emocional.
Uma linha de velas acesas, com as suas trémulas chamas, dão o mote a um trabalho pautado pela música antiga e figurinos modernos. Assinale-se que são da autoria de Karl Lagerfeld e que estão longe de serem apelativos ou terem algo a ver com a dimensão espiritual que o coreógrafo pretende transmitir.
Dançado em pontas o coreógrafo, que se assume ateu, dentro da abstracção, procurou que cada artista imprimisse um certo sentimento místico aos passos dentro da relação masculino-feminino.
Terá sido esse permanente estado vibratório dos corpos – para além de um muito cuidado desenho luminoso –que arrebatou o público que esgotou repetidamente o auditório da Casa da Dança, que aplaudiu mais que generosamente os artistas dos BM.
Hofesh Shechter e a sua "Mãe Política"
Começando pelo título, “Mãe Política” e pelos tampões para os ouvido fornecidos à entrada pelos assistentes de sala, nada na violenta peça de de Hofesh Shechter foi deixado ao acaso, ou surge de um modo ingénuo ou gratuito.
O coreógrafo israelita sedeado em Londres (que já se apresentou em Portugal) arquitectou esta sua primeira peça que abrange todo um programa com a separação da música do movimento e com os bailarinos a entrar e sair de cena de maneiras inesperadas dentro de uma densa bruma.
Peça de ambiente pesado – ou melhor dizendo, de pesadelo – sem discurso descritivo, parece situar-se entre o bélico e o folclórico. De uma intensidade brutal e com movimento quase sempre frenético, tenta criar uma atmosfera de “fim do mundo”. Obra avassaladora, para dez bailarinos e oito músicos (percussão e cordas) com um alto nível de testosterona. Os bailarinos, sobre o palco, parecem competir ao longo de uma hora com o “electro rock” das barulhentas guitarras eléctricas e baterias, colocadas em duas linhas em níveis superiores.
Com imagens tão duras quanto “eficazes”, “Mãe Política” começa com a simulação de um suicídio de um solitário guerreiro enterrando a respectiva espada no peito, num ambiente de forte tensão emocional. Depois os bailarinos aparecem e desaparecem em linhas e grupos a executar algo que se assemelha a danças israelitas tradicionais! As mesmas que o autor liga à repressão e à ditadura. Um desenho de luz altamente engenhoso e muito bem executado e uma entrega total dos artistas fazem a diferença num trabalho em que os decibéis – muito acima do normalmente tolerado – atacam os espectadores conseguindo manter Shechter os espectadores em suspenso.
Ou melhor, como nada é previsível no arco que a peça percorre, mais parece que durante o tempo em que a ela dura estivéssemos todos (alguns milhares de espectadores no Auditorium de Lyon) com a sensação de estar sentados com uma pistola apontada à cabeça.
Maguy Marin estreia "Salves"
Após o anúncio, pela própria Magyu Marin, do seu afastamento voluntário de Centro Coreográfico Nacional de Rillieux-la-Pape (nos arredores de Lyon), a coreógrafa regressa à Bienal com uma obra de fôlego: “Salves”.
Como já é hábito, muito bem recebida pela crítica – geralmente mais aclamada pelos especialistas do que pelo público em geral – a peça que começa toda em delicadeza revela-se de uma intensidade, para não dizer, bruteza, notável.
Dentro de uma espécie de teatro/armazém – na Villeurbanne – os intérpretes, sete homens e mulheres com um aspecto e roupas perfeitamente normais, vão, um a um, saindo discretamente da plateia para segurar um ténue fio de nylon invisível. Tudo começa em doçura até que no final o espaço se transforma num perfeito caos sobre uma enorme mesa de banquetes (construída pelos próprios performers) com os convivas a agredirem-se violentamente uns aos outros.
Tal como a coreógrafa refere no programa estamos em presença de “um mosaico de épocas, de presenças, de passagens e de anónimos sobre o espelho estilhaçado do palco”.
O trabalho de Marin – uma artista muito conhecida e querida da região – algo metafórico, de difícil desconstrução e sempre com alguns laivos de mistério, trata de temas do quotidiano, comezinhos ou de elevada nobreza, mas sempre vistos pelo óculo de uma coreógrafa interventiva e repetidamente provocadora.
De notar que uma das criadoras-intérpretes de “Salves” é a bailarina portuguesa Teresa Cunha que há muito anos faz parte da equipa criativa e pedagógica de Maguy Marin.