Não há dúvida que a programação do Teatro Nacional D. Maria II, nos últimos anos, tem se diversificado – o que é manifestamente positivo – e mudado bastante. A verdade é que com a fúria (será moda ou, provavelmente, escape ?) de “reescrever” os clássicos, muitos criadores chamados ao Rossio estão, basicamente, a “travestir” peças de teatro tradicionais. Deixando, quantas vezes, como resíduo obras que assentam num conjunto de simbologias mais ou menos casuísticas. Partindo de um âmbito visivelmente conceptual elas acabam por depender, em quase tudo, das capacidades e habilidades cénicas dos intérpretes. E também das dos criativos, ligados muito mais à forma que ao conteúdo.
E as mudanças também se notam no tipo de público que assiste a espectáculos, como “As Bacantes” (com o subtítulo “Prelúdio para uma purga), de Marlene Monteiro Freitas, estreado na sala principal no dia 21 de Abril. Apesar da artista cabo-verdiana, basicamente, se identificar como coreógrafa, para quem esperava uma peça com ligações à dança, acabou por se enganar. E desiludir. Ainda que movimento e agitação não faltem ao longo de mais de duas horas de actividade. Trata-se, por assim dizer, de uma espécie de “musical” que se situa entre o “freak show” e o burlesco – sem a graça e a crítica do chamado “vaudeville” ou o exotismo das danças circenses do chamado “cabaré” – sem qualquer linha narrativa perceptível! Muito por alto, pode-se dizer que é um quinteto de multifacetados trompetistas que “conduz” um espectáculo inusitado que, a determinada altura, até projecta um documentário em vídeo em que se vê um parto – sem assistência médica – ostensivamente de frente em toda a sua crueza e despojamento.
Não se poderá falar de uma proposta teatral no sentido mais tradicional do termo pois o texto é residual e não existe nada que o ligue, verdadeiramente, à tragédia de Eurípides. Aliás, a autora assinala que são umas “Bacantes” a partir de Eurípides o que, à partida, já lhe permite uma liberdade que pode desembocar em qualquer coisa. Já Rui Horta, há uns meses, tinha levado ao Nacional um “Romeu e Julieta”, criado para Companhia Nacional de Bailado, que, de Shakespeare nem o título parecia fazer jus ou, mesmo, sentido!
Marlene Freitas optou por desfocar o escopo da obra caricaturando aquilo que constitui a sua base, como se isso fosse ao encontro de um certo tipo de espectador que tanto lhe faz rir com a tragédia ou “sofrer” com a comédia e, no dia seguinte, vai mostrar o seu estado de alma colocando um “like” na página do Facebook.
Olhando para a ficha técnica de “As Bacantes” percebe-se que a sua criadora apresenta uma bela carteira de ligações – só de co-produtores se contam umas duas dezenas a nível europeu – o que prova que a moda dos espectáculos “branchés” já há muito que pegou por “terras de França”. Estamos, pois, a referirmo-nos a um “género” teatral híbrido, por vezes com algum humor e em que vale quase tudo… menos arrancar olhos! Se bem que nem estes estejam a salvo, pois, uma das artistas (estranhamente) consegue a proeza de passar todo o tempo de olhos bem arregalados. E muitos dos seus colegas fazendo inusitadas caretas ou brincadeirinhas meio infantis, sem que nada o justifique ou pareça adequado ao momento.
O início da peça é algo desenxabido, apresentando uns mecânicos trompetistas que vêm do exterior da sala e se exibem na coxia central num básico exercício de dissonâncias sonoras, enquanto o palco surge povoado por uns indivíduos irrequietos que se movem descontraída e idiossincraticamente no meio de uma floresta de estantes de música metálicas, bancos, microfones em tripés e um espelho fixo atrás. Aliás, as estantes acompanham as sucessivas ideias simulando com elas, os artistas, máquinas de escrever, aspiradores, auscultadores, instrumentos musicais, etc. Com algum espanto os espectadores reagiram de formas muito diversas. Viu-se de quase tudo, desde o riso à indiferença passando pela sonolência. A acção teatral no palco começou verdadeiramente quando uma mulher de costas e dobrada para frente com um microfone a apontar para os genitais vai se deslocando para fora de cena como se o rabo estivesse a cantar! Um cantor de voz rouca fez, de seguida, um solo e o grupo (de três mulheres e quatro homens) munido de uns tubos verdes soprou, mais adiante, nuns improvisados bocais imitando os trompetistas nuns “gags” mais ou menos conseguidos, até que surgiu a frase “stop this fucking music right now”. Mas ela (a música) não parou e, depois, ainda se ouviu o estafado “Lamento de Dido” (de Purcell), com o filme atrás mencionado. E quando tudo parecia ter mesmo terminado, depois das imagens de uma criança a sair das entranhas da mãe, desatou tudo a tocar – o melhor que podia – o “Bolero” (de Ravel) durante mais uns longos 25 ou 30 minutos, sobre uma peça pré-gravada!
Assim terminaram umas “variações” para trompetes e estantes de música, intituladas “Bacantes” e cujo invólucro não se revelou particularmente brilhante nem a nível de cenografia e, muito menos de figurinos. Estando todos vestidos com uns “uniformes” deselegantes e nada imaginativos. O trabalho de iluminação foi mais do que básico que se pode imaginar sobre um conjunto de adereços repetidamente manipulados com alguma graça mas sem particular novidade.
A concluir pode-se afirmar que o referido trabalho nunca apresentou qualquer tipo de eloquência (como seria espectável numa tragédia grega) e a sua rectórica não foi além do nível do mais imediato entretenimento. Poder-se-á ainda acrescentar que, por vezes, estas “Bacantes” são tocadas por uma certa ingenuidade, e que Marlene Freitas recorre a todas as habilidades vocais, histriónicas e musicais de cinco músicos-actores e de sete “performers” que, muito provavelmente, almejam ser músicos ou, mesmo, bailarinos.
Deixando Eurípides de lado e parafraseando Oscar Wilde, “nada (nunca) faz tanto sucesso como o excesso”. Será mesmo?
Fotos: Filipe Ferreira