CNB: UMA NOVA “CASA DOS SEGREDOS”

CNB: UMA NOVA “CASA DOS SEGREDOS”

006_a perna esquerda de Tchaikovski (ensaio)_BS_

Embora um bom título, ainda que com cara e cheiro a manchete, nunca tenha gerado um bom bailado, certamente muito haveria a dizer sobre qualquer das pernas do grande Pyotr Ilych Tchaikovsky (1840-1893) usando meios como o cinema, o teatro, a literatura, a medicina ou, mesmo, a adivinhação. E muito mais, certamente, sobre os seus dez dedos que tamborilaram as teclas do piano ao compor o monumental “Lago dos Cisnes”. Pois, tanto quanto se  sabe, não era nem coxo nem exibia qualquer deformação física, hoje tão em moda nos palcos de dança. É certo que a sua gloriosa música já inspirou largos milhares de bailados mas, agora que em Portugal passamos por uma fase tão pouco eloquente na dança, a Companhia Nacional de Bailado (CNB) utiliza – em vão – e vai à boleia do nome do imortal compositor russo para um espectáculo que tem tanto de “pitoresco” como de pouco original. Mas para o caso, o título também podia ser a orelha direita de Tchaikovsky ou a esquerda de van Gogh… que dava no mesmo, relativamente a uma peça inspirada em algo parecido com literatura de… cordel!

A Perna Esquerda de Tchaikovsky resulta num trabalho híbrido, em jeito de sessão de “confessionário” de reality show, com uma bailarina, Barbora Hruskova, a falar da sua (conturbada) vida artística numa “faz-de-contas-dramático-conflituosa-pós-reforma” e a martelar no que resta em forma do seu corpo puxado até aos limites; e um pianista, Mário Laginha, ambos em cena quase hora e meia.

Trata-se, sem dúvida, de um tour de  force para a artista francesa radicada em Portugal, e que parte de pressupostos algo básicos. Desde logo, um texto desinteressante, lamechas e autocomiserativo, da autoria do novo director do Teatro D. Maria II, Tiago Rodrigues, que dirigiu (teatralmente) uma peça dançada em que não aparece creditada no programa qualquer coreografia. Mas ela existe e é de Lev Ivanov (os apontamentos do II acto do Lago), de Petipa (o solo do I acto do D. Quixote, cuja música, de Minkus, a bailarina canta ao mesmo tempo que simula os passos da variação) e mais uma espécie de selecção de “rotinas” coreográficas que parecem tão saídas do corpo de Barbora como a música dos dedos improvisadores de Mário Laginha. Cujo trabalho, aliás, acaba por ficar um pouco apagado, remetendo-se repetidamente, para uma espécie acompanhamento de fundo (que em cinema se denominaria incidental music) ao contrário de uma prestação do seu falecido amigo, Bernardo Sassetti que, no passado, brilhou – muito acima da maioria das coreografias – numa peça sem grande história e que foi, de seguida, para as  calendas gregas.

perna esquerda de Tchaikovski (ensaio)_BS_

Antes da bailarina entrar descontraidamente em cena para nos vir falar do calvário que é (repetidamente) dançar com dor e lesões – coisa que os artistas da dança “sofrem na pele”, nos músculos e nos ossos sem aparente glamour – o pachorrento pianista simula que está a afinar o piano para criar algum clima enquanto os espectadores vão ocupando os seus lugares na plateia. O espaço cénico – que também não tem autoria listada – desenvolve-se em três camadas: a óbvia, uma barra que não é como as de “estúdio” mas sim um adereço criado para o efeito, uma placa vertical escura com muitas palavras alusivas à dança escritas a giz e, atrás dela, um telão com uma qualquer paisagem de toque romântico. A iluminação do espectáculo, a cargo de Cristina Piedade – a directora técnica do Teatro Camões -, ficou aquém do esperado. A falta de um desenho de luzes mais sofisticado e interventivo tornou a peça algo bidimensional e, sobretudo, bastante previsível a nível de planos dramatúrgicos.

Mais que russo ou luso, o trabalho que de “tchaikovskiano” nada mais tem que umas sequências tocada ao piano do chamado “adágio do cisne branco”, apresenta-se com um duplo sotaque francês. Para além de muito palavreado em que Barbora – que ainda não há um ano fez o seu adeus aos palcos no mesmo Teatro Camões, em “Giselle” – se sai muitíssimo bem, este solo parece ter por “inspiração” numa badalada peça do iconoclasta e muito contestado “príncipe” da “não-dança”, Jérôme Bel, criada em 2004 para a bailarina francesa da Ópera de Paris, Véronique Doisneau, e reproduzida pela brasileira Isabel Torres dois anos depois, no Teatro São Luiz em Lisboa.

Assim sendo, se algum público se deliciou com as confissões, coragem física e verbal e, até, as idiossincrasias da artista, para além dos rendilhados e brilhantes solos musicais de Laginha, genericamente falando, pouco ou nada se acrescentou aos que viram a peça de Bel e, muito menos, ao universo real de qualquer artista da dança.

Mas hoje, que se fazem tantos workshops e residências artísticas – para “facilitadores” de coreografia e “directores” de espectáculos sacarem material aos bailarinos que passaram anos a estudar e a praticar no seu próprio corpo – tal como se fizeram oficinas de tudo e de nada para extorquir euros dos fundos comunitários, é claro que a CNB está no bom caminho. Desde logo organizando conferências com “gente que não percebe nada de dança” (sic) e contratando alguém como Sónia Batista – a “gueixa” das latas de  sardinha e dos bonecos amestrados do McDonald’s – para um “projecto de aproximação à dança”. O único problema é que tratando-se de uma Homenagem ao Ballet Gulbenkian, convinha que fosse alguém que soubesse onde fica a Praça de Espanha! Local onde, durante muitos anos, Vasco Wellenkamp se deleitou com as suas danças pensando que era Kylián, e Olga Roriz se extasiou (olhando-se no espelho) crendo ser Bausch. Como se isso já não bastasse, a Moscavide aportou agora uma pálida sombra de Bel para abrilhantar a paisagem da CNB onde os efeitos de “moda” são reis e onde, para mal dos nossos pecados e bem dos deslumbrados, aterram quase todos os cometas do firmamento terpsicoreano nacional.

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Em conclusão: para quem gosta de obras confessionais – e por tal raramente envolvem alguma perenidade – e que até poderiam ficar bem num estúdio coreográfico ou, eventualmente, numa sessão de estudo da psicologia do bailarino na pré-reforma ou na pós-aposentação, meia estrela para a concepção cénica de A Perna Esquerda de Tchaikovsky e mais cinco a dividir por Barbora Hruskova e Mário Laginha.

Published by Antonio Laginha

Autoria e redação

António Laginha, editor e autor da maioria dos textos da RD, escreve como aprendeu antes do pretenso Acordo Ortográfico de 1990, o qual não foi ratificado por todos os países de língua portuguesa.

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