A (má) moda dos espectáculos em cima de palcos havia de chegar ao imenso espaço cénico do Teatro Camões… Se há duas centenas de anos essa era uma prática comum – abandonada devido à crescente “promiscuidade” entre artistas e público e aos excessos a que isso conduziu – poder-se-á dizer que, em pleno século vinte e um, essa é uma boa solução para “aproximar” o artista dos espectadores que, assim, podem até partilhar as respectivas respirações e mesmo grande proximidade física e emocional. Se em termos financeiros esta solução é péssima, pois numa sala com mais de 600 lugares sentam-se apenas umas 150 almas – e o valor do gasto por espectador dos nossos impostos sobe astronomicamente – em matéria de marketing parece muito estimulante pois com uns amigos, uns conhecidos e alguns convidados os espectáculos esgotam num ápice!
Posto isto, passemos ao que aconteceu na penúltima semana de Maio no Camões que abriu as suas portas a dois casais de bailarinos, Henriett Ventura e Xavier Carmo, da Companhia Nacional de Bailado, e São Castro e António Cabrita, afiliados com a associação Vo’Arte. Qualquer deles é um artista maduro e experiente, habituado às “agruras” e “êxtases” do movimento. Com excepção do último – que tem desenvolvido a sua carreira em projectos mais ligados à imagem e a dança de características menos “académicas” – a sua presença já é garante de movimento musculado e com verdadeira substância.
Começando pela óptica visual, a proposta cénica não podia ser mais básica: uma enorme plataforma em forma de quadrado a meio metro de altura do chão onde os quatro sobem para dançar ou caminham à sua volta… O espaço é sombrio e acinzentado (a cor negra das paredes e a parafernália de um sofisticado palco a isso conduzem) e os figurinos dos artistas, bastante recortados cobrindo muita da pele, alinham pelo mesmo tom. Se bem que a hábil iluminação de Vítor José consegue criar zonas de alto contraste no imaculado branco do solo e, até, uma espécie de dramaturgia subliminar que vai “amparando” o olhar do espectador ao longo de mais de uma hora de espectáculo…
E tudo começa com Xavier no escuro a tossir e depois a torcer-se no solo com movimentos anguloso e compulsivos. De seguida entram as duas mulheres e surge um agradável solo de violoncelo a acompanhar a dança. A obra “Tábua Rasa” – cuja sonoridade nos remete de imediato para a partitura homónima do compositor estoniano Arvo Part – é acompanhada por composições de músicos como Johann Johannsson, “Miracle, mystery and authority “, “Set Fire to Flames“, “This thing between us is a rickety bridge of impossible crossing”, Machinefabriek, “Stillness #4″, Peter Broderick & Machinefabriek, “In Session 05 10 09“, Oren Ambarchi, “Quixotism Part 1“ e Machinefabriek, “Drijfzand”. A mesma desenvolve-se em várias combinações de corpos, que arfam, se atiram para o chão e se levantam ou, simplesmente, desenham gestos mais ou menos “reconhecíveis”. Muitos deles surgem íntimos e minuciosos, sem aparente significado mas coerentemente integrados no tipo de movimento em presença. Na verdade poucas vezes se vêem verdadeiros duetos ou quartetos. Isto é, na maioria das vezes o que os artistas executam são solos em uníssono, não se afastando em muito de uma velha prática da dança clássica. Poder-se-á, mesmo afirmar que quando dançam em dueto Henriett e Xavier são bruscos e acentuam uma certa tensão entre ambos enquanto São e António exibem uma relação mais harmoniosa. Amorosa, mesmo. Estes, num dueto muito apelativo a meio da obra, aninham-se um no outro em carinhosos abraços, depois abrem-se e voltam a fechar-se num só corpo. Tendo em conta que se trata de dois casais na vida real esta transposição para palco de afectos ou costuras do quotidiano transformaram “Tábua Rasa” numa peça bastante atípica no actual cenário da nossa dança “contemporânea” em que qualquer esboço de felicidade é praticamente inexistente e os afectos fortemente artificializados.
Como atrás de afirmou, a dança em causa é muito ancorada na vertente solística, desenvolvendo cada um dos intérpretes movimento bastante personalizado e marcadamente orgânico e visceral. Essa é, seguramente, a sua maior força, para além de uma excelente coordenação entre o material coreográfico desenvolvido e que assenta bastante nas detectáveis experiências profissionais de cada um dos quatro intensos, exigentes e muito rigorosos intérpretes.