A última produção do Quórum Ballet (QB) é toda ela fado e movimento, jovialidade, ligeireza e… água!
“Correr o Fado” assume-se como uma rapsódia fadista – fados e guitarradas – com música ao vivo, interpretada por uma cantora em cena e três músicos (a formação clássica do fado) fora do cenário, para além de oito bailarinos, à frente de um enorme painel de quadrados de vidro acrílico suspensos em tiras.
Há anos que um crítico de dança norte-americano, após a apresentação no Joyce Theatre de Nova Iorque da obra de Vasco Wellenkamp, “Dançaramália”, perguntava em título de artigo, “Pode Dançar-se o Fado? Assumindo, naturalmente, tratar-se de uma “canção de alma” e desconhecendo que o fado para além de cantado, outrora, também era “batido”.
Curiosamente, a chamada dança jazz, com origem nos Estados Unidos, apesar da denominação, sempre foi dançada sobre músicas que não tinham nada a ver com o jazz tradicional de Nova Orleães! Formalismos à parte, o fado, como qualquer outra música nos tempos que correm não só pode ser dançado – e a dança pode ser bem ou mal executada, como todas -, como, em nome da liberdade artística, pode ser utilizado das mais diversas formas.
No caso de “Correr o Fado”, assinado por Daniel Cardoso, bailarino, coreógrafo e director artístico do QB, o movimento exuberante sobrepõe-se a qualquer outra premissa já que se trata de um trabalho que aposta essencialmente numa vertente fortemente cinética, em detrimento das palavras cantadas pela jovem Joana Melo. Porém, o que lhe sobra em ritmo e pulsação falta-lhe em conteúdo. A peça, que prima pela alegria e pulsação e assenta em composições musicais de cariz muito popular – para além do cânone amaliano surgem fados popularizados por Mariza e Katia Guerreiro e o tema do filme “Verdes Anos” da autoria do genial Carlos Paredes – carece de momentos mais introspectivos e de faixas em que se pudesse apreciar uma certa maturidade artística que a maioria dos elementos em palco não consegue deixar transparecer.
São todos jovens e sensacionais na sua dedicação, esbanjando generosidade dentro de roupas esvoaçantes e deliberadamente sensuais, no que toca ao elenco feminino. São vigorosos, intrépidos e focados a cem por cento. Todavia, a escrita coreográfica – em quase todo o bailado que dura mais de uma hora – restringe qualquer laivo de improvisação pessoal ou liberdade artística, espartilhando os intérpretes num desenho fortemente condicionado por uma rotina esquemática, um pouco repetitiva.
Em termos de “mensagem” a obra é parca já que o coreógrafo em momento algum se cola aos belos poemas cantados. E as cenas finais, com chuva e o palco pejado de água, que sai em catadupa das mãos dos bailarinos de cubos vítreos estrategicamente colocados em cena, apesar do excelente efeito visual, parecem surgir um pouco fora de contexto. Para além do coreógrafo, que faz parelha com a promissora e delicada Inês Pedruco, dançam Theresa da Silva Cardoso, Inês Godinho e Mathilde Gilhet, acompanhadas por Gonçalo Andrade, Elson Ferreira e Filipe Narciso.
Em resumo o QB – “herdeiro” natural da extinta CêDêCê / Companhia de Dança Contemporânea – aposta num projecto enérgico, algo popular e que (felizmente) puxa pelo público tão desabituado de dança de músculo, sensualidade e exultação. A "acessibilidade" da proposta é óbvia ou não fossem os fados tradicionais, e alguns “contemporâneos” cantados com garra e sentimento, meio caminho andado para o sucesso de “Correr o Fado”.