A DANÇA NA POESIA DE FLORBELA ESPANCA – ANTÓNIO LAGINHA

A DANÇA NA POESIA DE FLORBELA ESPANCA – ANTÓNIO LAGINHA

Em 2 de Maio de 2012, completou-se meio século sobre a estreia do bailado “Homenagem a Florbela”, uma das mais belas obras do reportório do Ballet Gulbenkian – BG (1961-2005). Foi uma das mais dançadas pela companhia – então chamada Grupo Experimental de Ballet (GEB) – e o seu primeiro sucesso que catapultou artistas como Isabel Santa Rosa e Carlos Trincheiras para a fama.

Esse é o ponto de partida para o presente estudo que se debruça sobre as três mais importantes peças que a dança portuguesa produziu inspiradas na vida e obra de Florbela Espanca.

A dança e a poesia portuguesas estarão para sempre em débito com o primeiro director artístico e coreógrafo do BG, Norman Dixon e os irmãos Carlos e Jorge Trincheiras. Não só criaram peças de dança inspiradas pela escritora calipolense, como Carlos, para além da forte influência na criação de “Homenagem a Florbela”, de Norman Dixon, também iniciou o seu irmão mais novo no “universo florbeliano”. O coreógrafo britânico, que actualmente vive na Croácia era, então, o director do Grupo Experimental de Ballet (GEB) do Centro Português de Bailado e criou uma das obras emblemáticas do reportório da jovem companhia que se viria a transformar em 65 no Grupo Gulbenkian de Bailado e mais tarde no carismático Ballet Gulbenkian, o qual viria a ser aniquilado em 2005 após se ter tornado na mais conhecida instituição de dança portuguesa de todos os tempos.

 

 

HOMENAGEM A FLORBELA

Coreografia: NORMAN DIXON (1926)

Música: FRANK MARTIN (1890-1974),  Pequena Sinfonia Concertante Op. 54, para harpa, cravo, piano e orquestra de cordas

Cenário: JÚLIO DE SOUSA

Figurinos: JÚLIO DE SOUSA

Voz: CARMEN DOLORES

Poemas: FLORBELA ESPANCA

Direcção de Ensaios: BERNARDETTE PESSANHA

Estreia absoluta: 02.05.1962, pelo BALLET GULBENKIAN (Grupo Experimental de Ballet do C.P.B.) no TEATRO AVENIDA (COIMBRA)

Intérpretes: ISABEL RUTH; CARLOS TRINCHEIRAS; BERNARDETE PESSANHA; ISABEL SANTA-ROSA; ALBINO MORAIS; JULIE RIBEIRO, ÁGUEDA SENA; INÊS PALMA; CÉLIA VIEIRA; MAFALDA LENCASTRE; OLGA MARIA; MANUELA VALADAS; MICHEL LAZRAH; CARLOS SERRA; COHEN SARMENTO

Após a estreia de “Homenagem a Florbela”, em 2 de Maio de 1962, nos dos espectáculos posteriores o texto inscrito de apresentação mudou para a seguinte forma: “Este bailado foi inspirado na vida e obra duma das maiores poetisas portuguesas do princípio do século – Florbela Espanca. Não se pretendeu contar uma história, mas sim interpretar um estado emotivo, uma atitude que se julga ter descoberto através do estudo da biografia e dos poemas de Florbela. É o drama duma mulher estranhamente romântica e apaixonada e nele perpassa e se agita a sociedade do seu tempo, a grande personagem que redopia à sua volta, que a envolve e a submerge acabando por lhe servir de penedia – da qual tombará para o profundo abismo.

 “Foi o Carlos Trincheiras que me ofereceu um livro com os poemas de Florbela, lançando as sementes da obra. De seguida tentei ler alguns dos sonetos, com alguma dificuldade, diga-se, mas, desde logo, achei-os incríveis e fiquei completamente fascinado. Eles são de cortar a respiração, cheios de dolorosa paixão e muita emoção. Tive a percepção intuitiva que aquele livro tinha sido um presente de Deus e que não só a escrita mas também a vida da poetisa estavam a reclamar um tratamento muito especial. Na altura fiquei completamente obcecado com o tema, bem como todos os que me circundavam (Carlos Trincheiras, Isabel Santa Rosa, Águeda Sena, Bernardette Pessanha e outros) tendo eles me ajudado muito nesse trabalho. Levaram-me até Vila Viçosa ao túmulo da escritora e para conhecer alguns dos seus familiares. Também o cenógrafo e figurinista Júlio de Sousa (1906-1966) um homem brilhante com quem partilhei muitas noites em casas de fado e que imagino que tenha conhecido a própria Florbela Espanca – me deu informações e algumas ideias preciosas. Inevitavelmente a maior influência que se podia detectar na peça era a das obras de Antony Tudor. O que é perfeitamente normal já que havia imensos trabalhos dele no reportório do Ballet Rambert e eu dancei alguns deles. Aprendi com eles, como lidar com as personagens e que elas devem saber porquê e onde estão a dançar, como comunicam umas com as outras e como se relacionam com as situações dramáticas. Além de que a dança deve fluir naturalmente dos impulsos dramáticos.  Sempre considerei “Homenagem” um dos meus melhores bailados, produzido num período muito estimulante e criativo das nossas vidas. Os bailarinos do GEB eram muito jovens e cheios de entusiasmo. É verdade que alguns deles apresentavam limitações técnicas mas eram muito perseverantes e estavam sedentos por embarcar em novos desafios. Trincheiras e (Isabel) Santa Rosa faziam um par muito atraente e completava-se quando dançavam. Creio que explorei muito bem o potencial de ambos, o que ajudou ao seu sucesso pessoal e ao da peça. Todo o elenco desempenhou muito bem os seus papéis e devo mencionar o importante trabalho, muito meticuloso, de Bernardette Pessanha que foi minha assistente na criação da obra. Para terminar não posso esquecer um facto que muito me impressionou. Isabel Santa Rosa que era uma mulher muito sensível, tinha vivido dois anos em Évora e tinha bons conhecimentos do local e época visados e conseguiu parecer-se muito, em cena, à própria Florbela Espanca.

Segundo a bailarina Bernardette Pessanha, “tratou-se de uma peça muito sentida por todos nós. O GEB era uma companhia nova em que todos estávamos muito empenhados e motivados pelo nosso trabalho e, acima de tudo, atraídos pela poesia e o próprio “mito” que já então era Florbela Espanca. Comecei por fazer o papel de mãe, mas acabei por dançar também uma das duas Florbelas. Era uma peça muito difícil a nível interpretativo e tecnicamente exigente. O resultado foi muito positivo, diria, mesmo, triunfante. Dançou-se muitas vezes e em muitos locais e foi remontado em duas épocas. Pode-se, mesmo, afirmar que foi um êxito ímpar na época por ser um bailado muitíssimo bem construído, muito humano, claro e acessível. Os sonetos ditos com profunda sensibilidade e muita classe (ainda que em gravação) pela grande actriz Carmen Dolores e uma música de muito boa qualidade, completaram o trabalho do coreógrafo e dos bailarinos que agarraram a peça com a alma e o coração.

Poder-se-á acrescentar que esta obra está alicerçada numa premissa muito curiosa. Enquanto a poesia de Florbela parte, frequentemente do binómio amante solitária-ser amado, distante ou inacessível, a obra de Dixon baseia-se numa relação triangular entre a poetisa, a morte e a sociedade. Curiosamente, sabe-se que, na altura da criação desta peça, existia um triângulo amoroso no elenco que era do conhecimento de todos os artistas envolvidos e que, naturalmente, apimentou todo o clima de criação e as ligações artísticas e pessoais entre os próprios intérpretes.

A ficção tem coisas bizarras, por vezes imitando a realidade e, quantas vezes, é a própria a realidade que cai nas teias da ficção. Possivelmente tal facto terá levado os artistas, incluindo os menos identificados com o tema e o “espírito florbeliano”, a darem uma excelente réplica interpretativa ao esquema coreográfico que o criador estabeleceu, sentindo o enredo do bailado de um modo particular ao recriar, nas tábuas, um novo “drama” por cima de um já existente.

Pode-se afirmar que, em termos de composição coreográfica, Dixon resolveu o início da obra de uma maneira convencional e sem grande inventiva, apresentando (num curtíssimo prólogo) personagem a personagem. Seguido de um grupo que simboliza a sociedade e tem como paisagem sonora o soneto “O Mundo quer-me mal”. A peça propriamente dita começa com o verso “Deixai entrar a Morte, a iluminada”, personificada por um homem. No caso o bailarino Carlos Trincheiras. A dança desenrola-se com duas Florbelas (a mais nova, Isabel Santa Rosa e a madura, Isabel Ruth, no elenco original) a mãe (Bernardette Pessanha) e o irmão (Albino Morais). Até ao seu epílogo parece haver uma continuada luta entre a trágica protagonista – numa interpretação bicéfala – a morte e a implacável sociedade, entidades que no final se fundem num “tableau”, esteticamente, muito ao gosto do “ballet inglês” dos anos 30 e 40.

O sucesso do bailado – a todos os níveis – ficou espelhado nas (poucas) críticas da época, algo insípidas e que, na verdade acabaram por não fazer jus nem ao trabalho do coreógrafo e bailarinos, nem ao êxito junto do público. A obra atingiu um recorde de longevidade muito pouco normal em peças do género, naquela época, uma vez que não se enquadrava no lote de obras pertencentes ao reportório académico-clássico e apostava num tema que transpirava “portuguesismo”.

 

“Homenagem a Florbela” é um trabalho ambicioso e de grande poder visual. Quando a cortina sobe entendemos imediatamente o real significado do novo trabalho de Dixon. (…) Não há nenhuma explicação (…) Não é uma história contada mas um estado de emoção psíquico que mostrou a vida e obra de Florbela Espanca. Com a sua “homenagem” à trágica poetisa portuguesa, Dixon soube revelar a realidade dolorosa de sua vida, e a obra transmitiu a essência da pureza, com que a música, a dança, e a poesia se ligaram”.

                                  Azevedo, Manuela (Lisboa, data desconhecida), Diário de Lisboa

De destacar, porém, o último ballet “Homenagem a Florbela”. Evocava-se a figura da admirável poetisa, que foi Florbela Espanca, cuja memória na voz de Carmen Dolores, esvoaçou pela sala em versos belos e bem recitados. A poesia, o bailado e a música, de braço dado nesse evocativo momento, dava a impressão que se completavam, que ambiente e movimento e sons viviam instantes de mistério, buscando personificar a emoção que deslizava nas figuras que se exibiam. Foi, realmente, um excelente número do programa (triplo) que dominou o público.

P.F.G. (Lisboa, 3-06-1962) República

 …) perante a realização do bailado Homenagem a Florbela, Norman Dixon revelou-se-nos pela primeira vez um coreógrafo de interesse e mérito. (…)

(…) A grande sensação da noite (aguardada e despois confirmada) residia na estreia do bailado Homenagem a Florbela (Frank Martin – Norman Dixon – Júlio Sousa) que, tendo muito pouco a ver com o ambiente dramático em que Florbela Espanca se debateu, é um belo bailado, moderno, de fluente linguagem coreográfica e narrativa, no qual Norman Dixon conseguiu inteligentes soluções e momentos de grande beleza plástica e dramática. Dixon tem, neste bailado, o seu melhor trabalho até hoje apresentado entre nós. Isabel Ruth e Isabel santa Rosa foram duas excelentes intérpretes de as duas faces de Florbela; Bernardette Pessanha, Albino de Morais, Julie Ribeiro e Carlos Trincheiras encarregaram-se com probidade dos restantes principais papéis, bem como apreciámos a actuação do corpo-de-baile. Bem escolhida a música e de belo efeito os figurinos e o cenário de Júlio de Sousa. A voz de Carmen Dolores, recitando Florbela Espanca, transmitiu ao público o momento poético com rara felicidade, em perfeita interpenetração com o bailado.(…)      

Tomaz Ribas (Lisboa, 3-06-1962) Tivoli – Grupo Experimental de Ballet – Crítica – Capital ?

Diga-se, porém, em abono da verdade, que Dixon foi sempre prejudicado pela incapacidade orgânica do Centro (Português de Bailado) (…) Deve-se-lhe, apesar de tudo, o primeiro ballet de nível internacional criado por um grupo português: “Homenagem a Florbela” (Frank Martin), apresentado com um grande rigor na escrita coreográfica e uma excelente imaginação dramática no traçar do retrato psicológico dos amores frustrados da poetisa Florbela Espanca. O clima desta obra evoca os bailados de Antony Tudor e atinge uma intensidade semelhante. Foi este o único dos seus ballets que passou ao Grupo Gulbenkian de Bailado, (…)  

José Sasportes, História da Dança em Portugal, Lisboa, FCG,1970, p.299

 

 

OS ÚLTIMOS SEGUNDOS DO ÚLTIMO SONHO DE…

Coreografia:  CARLOS TRINCHEIRAS (1937-1993)

Música: FRANK MARTIN (1890-1974),  Pequena Sinfonia Concertante Op. 54, para harpa, cravo, piano e orquestra de cordas

Cenário: EMÍLIA NADAL

Figurinos: EMÍLIA NADAL

Realização das maquetas: INÊS GUERREIRO

Estreia absoluta: 03.05.1975, pelo BALLET GULBENKIAN (Grupo Gulbenkian de Bailado) no GRANDE AUDITÓRIO GULBENKIAN (LISBOA)

Intérpretes na estreia: Ela –  ISABEL SANTA-ROSA, ISABEL QUEIRÓZ, MARIA JOSÉ BRANCO  Ele –  GER THOMAS e Os outros –  COLLEEN O’SULLIVAN, HELENA LOZANO, SOREN BACKLUND, FERNANDO LEONARDO, JAIR MORAIS, ERICH PAYER

Treze anos e um dia depois de Carlos Trincheiras ter protagonizado pela primeira vez – como bailarino principal do Grupo Experimental de Ballet – o papel masculino mais importante da “Homenagem” de Dixon, estreia em Lisboa (em 3 de Maio de 75) no Grande Auditório da FCG, a sua própria versão do “enigma florbeliano”, intitulado “Os Últimos Segundos do Último Sonho de… “. A partitura escolhida, sem grande espanto, é a mesma utilizada por Dixon, da autoria do compositor suíço Frank Martin (1890-1974). O coreógrafo português, após ter abordado alguns temas literários e históricos, designadamente o romance de Camilo em “Amor de Perdição” (mus. Joly Braga Santos) e o drama de Pedro e Inês em “O Trono” (mus. Bela Bartók), embrenha-se na poesia – amores e desamores, sonhos e pesadelos – de Florbela com uma visão que alguns, então, sugeriram, apresentar contornos fantasiosos a tirar para o delirante.

Curiosamente, o criador dedica esta peça à sua mulher, Isabel Santa Rosa, que, juntamente com as outras duas “musas” inspiradores de Trincheiras no BG, na época – Isabel Queiroz e Maria José Branco – desempenham os pepéis femininos principais. O bailarino holandês Ger Thomas, protagoniza uma personagem intitulada “Ele” e à pintora Emília Nadal coube “parte de leão” assinando os figurinos e, sobretudo, uma engenhosa cenografia. Esta, que terá nascido na cabeça do coreógrafo, foi acompanhada de muitos adereços que povoavam o palco dando à obra um clima que fez, de imediato, a obra transitar para um campo que, em muitos aspectos, se terá aproximado de um universo algo “surrealizante”.

Da seguinte maneira se referiu o crítico Tomás Ribas ao bailado em questão, num texto que lhe foi encomendado pelo Serviço de Música da FCG, em 1986, por altura dos 25 anos do BG.

“Armando Jorge, abandonando por vezes um dado neo-classicismo que caracterizava os seus primeiros bailados, conseguiu brilhantemente com «Canto da Solidão» e «Hossana para um Tempo Novo» dar o primeiro passo decisivo para a criação de uma estética coreográfico-balética portuguesa não folclórica, objectivo também tentado e procurado, com certo êxito, por Trincheiras com «Os Últimos Segundos do Último Sonho de…» obra sugerida pelo clima lírico e romântico-erótico da poesia de Florbela Espanca, mas que nada teve a ver com «Homenagem a Florbela», de Norman Dixon, anos antes criado pelo Grupo Experimental de Ballet”.

Por seu lado, o coreógrafo, em entrevista ao Diário Popular publicada no próprio dia da estreia, afirma: Baseei-me em alguns sonetos de Florbela mas, principalmente, na ideia dos últimos segundos de um último sonho… Evoca-se assim, um clima surrealista que se adapta à intenção de transmitir a corrente de pensamento de uma mulher sensível. A acção constrói-se numa sucessão de factos que correspondem a essa corrente de pensamentos: a mulher à procura de si própria, em que a personagem se desdobra em três: duas mulheres e uma outra que é o negativo das duas. A pintora Emília Nadal prestou-me uma notável colaboração ao encontrar uma solução maravilhosa, embora não muito prática. Sendo uma companhia que viaja muito, temos conveniência em conceber cenários o mais possível despojados, o mesmo se passando com o guarda-roupa (…) Desta vez, porém, com a total liberdade de acção que tenho como coreógrafo, optei por um compromisso: um cenário muito elaborado, que faz parte da cena e se desloca – trata-se de uma gigantesca cabeça que se abre ao meio e da qual saem as personagens. A música, por seu lado, casa-se muito bem com o ambiente sobrenatural e estranho que se vive durante o bailado”.

Se na primeira peça criada em torno do mito em que se já tinha tornado a poetisa de Vila Viçosa, o seu autor cria toda uma teia de personagens em que pontuam, para além do irmão e da mãe, nada menos que duas Florbelas (as quais se confrontam com um grupo que, genericamente, simboliza uma sociedade vingativa e castradora até uma ser levada pela Morte) já o coreógrafo português que, justamente, desempenhara aquele papel na obra de Dixon, pega no tema e desfia a meada de um modo bem diferente. Construindo, três arquétipos florbelianos, Trincheiras, imagina-os a sair de dois grandes cotilédones que se abrem para o mundo, movendo-se em torno de uma figura masculina, um Apeles, que toma o nome de… Ele. O Homem (a inequívoca representação do irmão de Florbela) surge na peça quase como uma figura de retórica, envolvido – algo superficialmente -, com as mulheres que parece lhe seguirem os passos. Mas são os outros … sempre os outros, a determinar o drama. Numa espécie de visão fatalista e onírica saída das imagens sugeridas pelos sonetos de Florbela, o coreógrafo – na sua vida pessoal, então, envolvido num outro triângulo amoroso – repesca o tema com uma visão bem mais moderna e, seguramente, muito mais ambiciosa, em que a cenografia se impõe – de um modo quase avassalador – e a palavra (dita em cena) desaparece completamente.

Em entrevista gravada dezoito anos depois da estreia dos “Últimos Segundos… “, Carlos Trincheiras – que então já vivia no Brasil onde era director de Ballet do Teatro Guaíra, em Curitiba -, afirmou: Hoje creio que sou um homem fora do meu tempo. Quando imperava no BG a “linha Sparemblek/Béjart” e as novas “estéticas modernas norte-americanas” eu insisti, contra tudo e contra quase todos, em fazer coisas portuguesas. E convocar Florbela, para mim, era mais que um dever… era uma obrigação”. (B2)

De acordo com Bernardette Pessanha, “a segunda Florbela nada tinha a ver com a primeira. Pode-se quase dizer que apenas o compositor era o mesmo. Tanto o Norman como o Carlos eram grandes criadores e, uma coisa é certa, a qualidade repetia-se. Tudo o que se fazia naquela casa (Fundação Gulbenkian) tinha um cunho de grande qualidade e um bom gosto indiscutíveis”.

Apesar de simbolista como a obra de Dixon, porém a sua antítese na vertente “descritiva”, sobre “Os Últimos Segundos…” Carlos Trincheiras afirmou que “Ele, o homem que aparecia calvo e misterioso (Apeles) era, definitivamente, o destino de Florbela. Um fado que se encontrava irremediavelmente ligado à liberdade dos pássaros e à perenidade das árvores que, justamente, apareciam em cena. E nuvens, muitas nuvens que viajavam entre o sonho e a incerteza.

(…) Trincheiras, que é, sem dúvida, um dos nossos mais dotados coreógrafos e que disso tão belas provas nos tem dado, não parece ter sido, desta vez tão feliz como em certas obras do seu passado. (…)

(…) Tanto Carlos Trincheiras como Emília Nadal denunciaram uma muito inteligente, sentida e entendida leitura (da obra) de Florbela. (…)

 Ribas, Tomás, GGB Estreou duas novas obras, A Capital (Lisboa, 5-05-1975), p. 20

A obra de Carlos Trincheiras não foi além de uma digressão pelos lugares comuns do discurso balético, a vários meridianos. (…)

(…) Ficou-nos a sensação que o bailado, muito longe de ir ao fundo do mundo torturado e de um erotismo todo interiorizado que é o mundo de Florbela Espanca, tinha ficado exterior ao tema e os bailarinos ao bailado.

 Nobre, Maria José Nobre Bailado novo e menos novo, Jornal Novo (Lisboa, 6-05-1975),  p. 9

De acordo com o testemunho da pintora Emília Nadal “O Carlos Trincheiras falou com o pintor Fernando de Azevedo – uma espécie de “consultor” não oficial dos artistas na Fundação – que era uma pessoa muito bem informada e prestimosa – que lhe disse que a minha pintura era onírica e figurativa, surrealizante e fantástica (no sentido do insólito e absurdo ligados ao sonho). Ao coreógrafo interessava-lhe, sobretudo, o universo poético de Florbela e quando concebi o cenário percebi que era fundamental que ele se abrisse para dar a ideia da saída uma multiplicidade de personagens e de sonhos. Tanto quanto me lembro, o Trincheiras pediu-me “uma coisa que abrisse” e eu fiz una maquete em barro, propondo que fosse uma cabeça em relevo, o que ele, desde logo, aceitou, mas cuja execução podia ser um grande problema. Contudo encontrou-se a solução esculpindo-a em esferovite nas caves da Fundação. A única escultora que naquela altura seria capaz de a executar era a Inês Guerreiro. A cabeça não só se abria ao meio, como as duas metades da face saíam do charriot. Depois eram retiradas por dois bailarinos que, ficando por elas encobertos, as moviam, acabando por retirá-las de cena, para o vazio do final. Estou convencida que algumas das soluções encontradas para o meu cenário influenciaram decisivamente a coreografia, sobretudo a presença de objectos móveis que interferiam no movimento dos bailarinos. Eu queria que eles voassem com pássaros e se misturassem com as nuvens. Havia na peça muitas coisas desconexas que tentei conciliar na criação dos figurinos, acentuando a opção das três mulheres e o conceito de positivo e negativo. Curiosamente as roupas desta peça, foram, posteriormente, exibidos numa exposição do Museu Nacional do Traje. Posso ainda afirmar que houve uma interacção muito positiva entre o meu trabalho e o do Trincheiras e isso foi amplamente reconhecido.”

O testemunho que se segue é particularmente elucidativo não só das vicissitudes do acto criativo mas também das limitações muitas vezes impostas interna e externamente. O coreógrafo, apelando às suas lembranças, confessou algum desencanto com o trabalho. “Inicialmente não queria fazer nada daquilo que acabou por ser mostrado ao público. Desde logo tive a ideia de conceber uma grande peça que se abria e deixava atrás de si um vazio. Creio ter feito uma coisa que era muito bonita ao recuperar a ideia de ter três mulheres representando casa uma, uma época da vida de Florbela. A música era muito dramática, mas algo “incompleta”. Por razões de agenda acabei por fazer o final a correr e, ainda por cima, faltou-me um lastro musical que me inspirasse para inventar um bom epílogo. Se fosse hoje não teria tido tantos problemas. Mas eu sempre fui tão “agarrado” à leitura musical que dificilmente, por respeito ao compositor, eu sairia da partitura. Anos depois eu cortaria, acrescentava e virava do avesso o texto musical, segundo as necessidades teatrais e dramatúrgicas. Sem qualquer problema. Mas não o fiz na altura e paguei muito caro por essa… indecisão! ““Os Últimos Segundos do Último Sonho de… “ não era uma peça linear, com uma história, antes pelo contrário. E, talvez por isso, não funcionou como eu queria. Todavia, considero que foi uma daquelas obras que tinha tudo para resultar de um modo espectacular, boa cenografia e figurinos, bons bailarinos e uma boa ideia … mas o resultado final ficou aquém das minhas expectativas. Com essa dança, a minha décima primeira obra oficial para o BG – já não era propriamente um principiante – cheguei à amarga conclusão que um conjunto de elementos interessantes não fazem um bailado de sucesso!

A verdade é que, apesar dos “escolhos” referidos, defeitos e qualidades de um bailado prenhe de histórias artísticas e pessoais, Trincheiras voltou a contribuir – desta vez como criador – com mais uma obra de fôlego para o pequeno mundo da coreografia portuguesa.

 

FLOR BELA

Coreografia: JORGE TRINCHEIRAS (1939-1991)

Música:RUI GUEDES (1957?- 2001)

Figurinos: JORGE TRINCHEIRAS

Estreia absoluta: Verão 1980, pelo OLISSIPO – GRUPO DE DANÇA EXPERIMENTAL JORGE TRINCHEIRAS, em teatrp desconhecido em PENICHE

Intérpretes na estreia: PEDRO PIMENTEL, LURDES MATOS, JOÃO FRANGO, CRISTINA GRAÇA, LUIS XAREZ, ISABEL MERLINI, ISABEL BERKEMEIER, MARINA SANTOS, PAULO BARRETO, JORGE TRINCHEIRAS, ISABEL GONZAGA, CRISTINA AMIL

A criação do Olissipo – Grupo de Dança Experimental Jorge Trincheiras, em Janeiro de 1981, inscreveu-se no desejo do artista em continuar o trabalho que desenvolveu nos Açores (Ponta Delgada), após o seu regresso a Lisboa para leccionar dança moderna na Escola de Dança do Conservatório Nacional. Em Setembro de 81 voltaria à Juilliard School onde obteve um B.F.A. (Dança) em Maio de 82. Já em Portugal, ao retomar o projecto Olissipo, o grupo deixou de ter apenas estudantes do Conservatório passando a reunir na sua primeira formação oficial, Isabel Merlini, Cristina Amil, Isabel Gonzaga, Cristina Perdigão, Luis Xarez, Filipa Canhão (à época Filipa Rebelo) e Pedro Pimentel. Em 1983 Trincheiras e os seus bailarinos receberiam o troféu Nova Gente para “o melhor grupo de bailado independente”. Durante quase dez anos Jorge Trincheiras coreografou e dirigiu o grupo, até 1990, enquanto o elenco foi sofrendo mudanças significativas e o seu acervo coreográfico aumentando.

Com um percurso de bailarino bastante substantivo em Portugal (em 5 de Fevereiro de 68 o Grupo Gulbenkian de Bailado estreou, no Teatro Politeama em Lisboa, “Judas” – com coreografia de Águeda Sena, sobre música de Frei Miguel Cardoso e música concreta – com o jovem Jorge como protagonista) e, sobretudo, no estrangeiro, em companhias de fama internacional, Trincheiras, procurou “reciclar” a sua carreira de intérprete estudando numa escola estrangeira de grande prestígio antes de se tornar professor de dança moderna, director de companhia e coreógrafo. Se bem que, durante alguns anos, ainda conciliou com essas facetas artísticas algumas incursões nos palcos.

Flor Bela 1

“Flor Bela” surgiu como um passo natural na carreira de alguém cujo irmão, um reputado coreógrafo, o apresentara, ainda jovem, à poesia da escritora alentejana. Mas, sobretudo, porque Jorge tinha dançado – não no elenco original – a emblemática obra de Dixon, “Homenagem a Florbela”, no Grupo Experimental de Ballet, em Fevereiro de 1964. Curiosamente, quando o marcante coreógrafo e professor já tinha sido sumariamente despedido daquela companhia, por decisão da directora do Serviço de Música da Fundação Gulbenkian. Devido à sua paixão pela poesia florbeliana Jorge Trincheiras, foi, ao longo da sua vida criando pequenas peças sobre os sonetos da poetisa romântica portuguesa.

Na opinião de Luis Xarez “a primeira obra que o Jorge coreografou terá sido um solo dançado por si nos EUA sobre o soneto “Amar”. Depois veio o dueto “Amiga” – que o coreógrafo dançou com a sua aluna Isabel Gonzaga – e alguns pequenos conjuntos inspirados por outros sonetos. “Relativamente à peça ‘Flor Bela’ lembro-me vagamente de umas coisas e bem de outras. Pode-se dizer que se tratava de uma ilustração de poemas, imbuídos de um certo lirismo, mas sem uma ligação coreográfica entre os diferentes sonetos. Teve, em alguns espectáculos, a Hermínia Tojal a declamar enquanto dançávamos e a reacção do público era boa. O Jorge era alentejano e tinha um fraco pela poesia de Florbela. Lembro-me de ainda nos Açores, onde comecei a dançar com ele no seu grupo, Ballet-Teatro Arquipélago, no Conservatório de Ponta Delgada, ele ter coreografado uns poemas da Emily Dickinson (em 1978). Tinha acabado de chegar da sua primeira permanência em Nova Iorque para estudar na Julliard Scholl e, tempos depois, quis fazer o mesmo trabalho com a poesia de uma portuguesa.”

FlorBela

Segundo o testemunho de Isabel Merlini “a peça a que foi dado o título de “Flor Bela” era, na verdade, um conjunto de pequenas danças que foi evoluindo, sendo aumentada e alterada conforme o número e a evolução dos bailarinos no elenco do grupo. E até de acordo com o tipo de convites que se recebia e o espaço que nos era destinado para dançar. Por exemplo, a obra foi dançado para a televisão num programa “Natal dos Hospitais” tendo, posteriormente, alguns excertos sido gravadas nos estúdios da Tobis e servido de “separadores” de programas da RTP 1 e 2. O bailado começou por ter música original executada ao vivo (composta e interpretada por José Peixoto e Pedro Ayres Magalhães) ditos pela actriz Hermínia Tojal. Parece que o primeiro esboço da peça terá sido uma curta dança criada nos EUA, quando o Jorge estudava na Escola da Martha Graham ou, mais provavelmente, depois já na Juilliard School. Na sua versão mais ‘corrente’ a peça, já no período final do Grupo Olissipo – e após ter recebido um galardão com alguma importância na época – era composta por um dueto, um sexteto (cinco mulheres e um homem), um trio (duas mulheres e um homem), um conjunto (sete bailarinos) e um segundo conjunto (de nove), mais um solo e um último conjunto.”

Em 79 Rui Guedes (1957?- 2001) grava com Eunice Muñoz um disco com temas tocados ao piano para alguns dos mais conhecidos sonetos de Florbela (reeditado em CD pela Movieplay, em 1997). O mesmo tornou-se bastante popular – sobretudo por via da rádio – tendo, então, surgido uma espécie de febre “florbeliana” em Portugal, fenómeno que, aliás, parece ter adquirido uma dimensão cíclica.

A partir de certa altura, Jorge Trincheiras começa a utilizar alguns desses registos musicais gravados num bailado deliberadamente abstracto. Porém, baseado, essencialmente, nos textos e clima criado pela escrita da poetisa calipolense, cuja estrutura e composição – ao contrário das peças de Norman e Carlos – nunca, verdadeiramente, adquiriram uma versão que se pudesse considerar definitiva. A título de exemplo, o solo inicial sobre o soneto “Amar”, em determinada altura, foi transformado pelo coreógrafo num quarteto masculino, e o dueto “Amiga” seria bastante dançado, em separado, por Trincheiras e uma bailarina-russo-americana, Natacha Obarovitch, que se tornou sua amiga em Nova Iorque e que esteve algum tempo em Portugal como bailarina convidada do Grupo Olissipo.  É de notar que o coreógrafo recupera a “fórmula Norman Dixon” com os sonetos presentes em cena na voz de uma declamadora, porém deixando, definitivamente, para segundo plano os (simples) figurinos e a (parca) cenografia. Poder-se-á afirmar, em conclusão, que a dança de temática “florbeliana” surge assim, na perspectiva do coreógrafo do Olissipo, como um objecto libertador e, em simultaneamente, catártico, Uma espécie de corolário de estímulos nostálgicos prenhes de sentimentalismo e saudade.

 

 

Em conclusão, ao analisar as três obras do ponto de vista composicional verifica-seque a poesia de Florbela é, definitivamente, o “leitmotiv” – motivo condutor – dos três bailados, abordando cada coreógrafo o problema/desafio de modo diverso. É certo que nas duas primeiras – de 62 e 75 – a presença de Apeles, revela-se como um fio condutor, ainda que ténue, e a dança surge prenhe de simbologias e, mesmo, alguns clichés associados à imagem de uma Florbela sonhadora e trágica. Por vezes a existência do poema é, não mais que um mero pretexto para se entrar por caminhos dúbios em termos de movimento.

Se a personagem de Florbela se apresenta, repetidamente, ferida de uma fragilidade terpsicoreana que tão bem se cola ao mito, Apeles, por outro lado, surge com o perfil de um vencedor que se impõe e domina mas também não escapa às teias do destino/morte. É, pois, um sujeito mais teatral que poético, mais secundário que determinante. Muitas das soluções encontradas parecem, propositadamente, enredar-se nas teias do dúbio e numa certa sede de alimentar não o mito mas, sim, a obra bailada. A perspectiva dos três criadores é romântica, na verdadeira acepção da palavra, procurando Dixon o lado psicológico das personagens, Carlos o dramático e Jorge o abstracto, porém, todos eles obedecendo muito mais a imperativos teatrais do que a literários.

Do ponto de vista estritamente coreográfico as três obras resultaram muito distintas sendo que, por ironia do destino, a que poderá ser considerada menos “expressiva”, “Flor Bela”, foi, por via da repetição televisiva, a mais divulgada – em forma de excertos – tendo entrado nas casas de muitos portugueses, via RTP. É certo que a que mais apresentações teve ao longo de vários anos foi a primeira das “Florbelas”, cujo sucesso a nível de público não deixou quaisquer dúvidas.

Se a dança creditada a Jorge Trincheiras era pouco mais que a ilustração da poesia de Florbela – muito suportada pelo ambiente quente que a leitura de Eunice Munõz aportava aos sonetos, na senda da utilização por Norman Dixon da “sofrida” voz de Carmen Dolores, também em gravação – a de Carlos foi bem diversa, recorrendo o coreógrafo, entre outras coisas a uma cenografia impositora e ao uso de sapatilhas de pontas para tornar mais dramático e “staccato” o movimento vagamente “balético”.

Musicalmente falando, Dixon e Trincheiras ouvem a mesma música como pano de fundo, respectivamente, para a tragédia e os delírios de Florbela, enquanto o piano de Rui Guedes e a voz profunda de uma das maiores actrizes portuguesas de todos os tempos (Eunice Muñoz – nascida em Amareleja em 1928) deu asas ao Grupo Olissipo. No caso de “Os Últimos Segundos… “, a obra de grande impacto visual – os bailarinos homens aparecem vestidos de carrascos como paradigma de uma sociedade que aniquila os mais fracos – ao contrário do que a paisagem musical que a envolve, pode, eventualmente, sugerir, tenta roçar o modelo surrealista com as muitas nuvens e pássaros que cruzam o palco como visões fugitivas ou calafrios que começam na retina e terminam na espinha. Foi, naturalmente, a mais elitista – até porque acabou por não ter tido a hipótese de aventurar a sair de uma “zona de conforto” e de “exclusividade”, a sala mais importante da Fundação Gulbenkian – e também a mais complexa. E, por consequência, a menos popular e a de mais difícil entendimento. A verdade é que os três coreógrafos deixaram como testamento artístico outras tantas obras que se inscrevem na dança “de literatura”, a qual não deixa de ser um interessante sub-capítulo da História da Dança Portuguesa.

Em resumo, se “Homenagem a Florbela, toda ela cheirava a romance e a drama e de “Os Últimos Segundos do Último Sonho…” transparecia exotismo e febril delírio, a suíte de danças intitulada “Flor Bela” situava-se no reino da abstracção, porém, era terrena e imediata, como uma charneca em flor exalando um perfume frutado e doce que se associa a um qualquer poema primaveril. Mais de um século depois do seu nascimento, a vida de Florbela continua eivada de dúvidas e contradições e a sua obra – de características confessionais e de um pungente lirismo – sempre tão afectiva, apetecível e desafiante, para outros escritores e artistas em geral.

Num universo tão transitório e até hermético em que, quantas vezes a dança procura na literatura meios de subsistência e, também, asas para os seus desejos mais inconfessáveis, a poesia dá-lhe elã, embora nem sempre se revele particularmente determinista

 

António Laginha

 

 

 

 

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Autoria e redação

António Laginha, editor e autor da maioria dos textos da RD, escreve como aprendeu antes do pretenso Acordo Ortográfico de 1990, o qual não foi ratificado por todos os países de língua portuguesa.

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