O cantor norte-americano James Brown (1928-2006) afirmava que “a única coisa que pode resolver a maioria dos nossos problemas é a Dança”.
Porém, em Portugal, para além de nem os próprios conseguir resolver, ainda – e contra a sua natureza – se revela uma dor de cabeça para todos os Portugueses: artistas, espectadores e contribuintes.
É que a nossa dança chegou a um estado tão lamentável que a Sociedade Portuguesa de Autores até dá uns prémios, com cobertura televisiva no primeiro canal, sem qualquer critério ou credibilidade, a grupos de “amadores” e são decididos “à porta fechada” por gente que nunca dançou na vida!
Mas esse verdadeiro assalto da incompetência (e, em simultâneo, da audácia) há muito que se verifica em todas as frentes tendo, mesmo, o antigo Ministério da Cultura e a actual Secretaria de Estado, vindo a nomear gente inqualificável. Para quem não tem a memória curta, sabe que têm havido casos de pura ladroagem na Companhia Nacional de Bailado (CNB). Já para não falar de um conhecido subsídio-dependente profissional da nossa praça que a última coisa que faz é “algo” parecido com… dançar. E não é por isso que, há dezenas de anos, a Direcção-Geral da Artes não lhe transfere, regular e ininterruptamente, uma quantia real para a sua conta.
Qualquer um de nós é forçado a concluir, e usando não a terminologia da “populaça” mas sim a dos deputados da Assembleia da República, que, onde antes havia Artistas, agora proliferaram os gatunos profissionais!
Por outro lado também não se vislumbra que possa surgir “numa qualquer manhã de nevoeiro” algum político honesto, com saber, determinação e coragem “que agarre o touro pelos cornos” para resolver problemas de décadas, os quais remeteram a nossa dança para uma obscuridade que cega, a nível nacional e internacional, nunca vista depois do 25 de Abril. Em última análise, é cada vez mais mal-amada e menos apreciada, o que se reflecte na contabilidade das bilheteiras e nos lugares vazios nas grandes salas. Muito possivelmente por isso, este ano, as mais importantes – subsídio-dependentes e falidas – casas oficiais de produção cultural sediadas na cidade de Lisboa elegeram uma coreógrafa belga, e a respectiva companhia vinda, uma dúzia de vezes, do Teatro da Moeda de Bruxelas, para “artista da cidade” de Lisboa! Este esbanjar de recursos e um deslumbramento bacoco perante a moda e o estrangeirismo mostram bem o género de pessoas que estão à frente das instituições culturais em Portugal.
Por conseguinte, desde logo, uma pergunta se impõe: será que sem dinheiro para a Cultura – a única afirmação “relevante” produzida por Francisco José Viegas enquanto governante – um “despromovido” Secretário de Estado pode ser mais do que uma figura meramente decorativa para aparecer nas inaugurações e dizer umas trivialidades para a televisão, e um invisível Director-Geral das Artes, um agente político com o poder de subsidiar e proteger amigos e conhecidos e fazer com que o seu gosto pessoal se sobreponha aos verdadeiros interesses artísticos do país?
Infelizmente, a nefasta prática da (má) nomeação, para tudo e para nada, só tem ampliado a incompetência e o laxismo, a corrupção e o nepotismo, a partidarite e o oportunismo em Portugal.
Estando a Dança pejada de aventureiros alimentados pelos dinheiros públicos e o apoio de amigos bem colocados na esfera política e nos “media”, acontece que, ainda por cima, são, em muito ajudados pela ausência de um permanente escrutínio protagonizado pela chamada “massa crítica”. É que essa presença (essencial) para a melhoria das artes, praticamente, desapareceu, pois os indivíduos que pensam e escrevem correctamente e com conhecimento de causa no país contam-se pelos dedos de uma só mão. Por mais voltas que se dê e por mais positivo que se queira ser, não se pode deixar de assinalar que a crise (de imaginação, profissionalismo e competência) na dança portuguesa chegou muito antes da crise financeira. Pois, mesmo no tempo “das vacas gordas” o que mais se fez foi esbanjar recursos e prejudicar os que gostam de dançar e ver dançar. E o resultado, num país em que a dança não tem a tradição francesa nem a espessura do sangue espanhol, não poderia ser outro. Temos hoje uma paisagem rarefeita em que pontua uma companhia nacional colapsante e com uma mão cheia de nada em termos de produção artística. E pouco mais… Aquilo a que se deveria chamar reportório, para deixar como legado às gerações vindouras, simplesmente, deixou de existir! Ou não é essa uma das principais funções de uma companhia de dança alimentada com fundos públicos? Porém, na prática, a CNB mais se tem comportado como uma santa casa da misericórdia para alguns artistas e uma caverna de Ali Babá para políticos e “gestores” culturais?
TRAIÇÃO e MORTE
Ao olhar uma história de cerca de 35 anos de CNB fica-se um pouco com aquela sensação de que a esquerda, armada em generosa, traiu a cultura e a direita está a enterrá-la, sem dó nem piedade.
Senão vejamos o que se passa na nossa única companhia com dimensão e expressão que sobreviveu à hecatombe que começou com o “assassinato” do Ballet Gulbenkian em 2005.
Tendo em conta o programa, apenas com obras de Anne Teresa de Keersmaeker, com que se iniciou a presente temporada, a ser “nacional”… só se for da Bélgica! Se a actual directora vive deslumbrada por aquela coreógrafa, bem podia ter remontado uma obra que já existia em reportório poupando milhões… Mas para quê aforrar numa casa em que o orçamento é, praticamente, todo gasto em salários, quando dois terços da companhia ficou a ver o terço restante a trabalhar?
Tudo leva a crer que os directores da CNB fazem o que lhes apetece sem dar contas a ninguém. E a arma do crime não tem sido só o despesismo e as negociatas, mas também a ignorância, que se traduzem numa gestão perfeitamente escandalosa que denota a carência do mais elementar sentido patriótico na defesa de uma personalidade artística e um reportório que possa (alguma vez) impor o desejo de ser vista no país e, naturalmente, no estrangeiro.
A CNB tornou-se numa espécie de BPN das artes portugueses onde o Estado, ao longo de cerca de três décadas, tem despejado dinheiro, sem tino nem controle. E os resultados estão bem à vista e têm sido pouco mais que maus!
Os directores nomeados – sem concurso – pelos sucessivos governos e sem qualquer programa de trabalho pré-estabelecido, têm feito daquela casa uma espécie de barco que se limita a praticar uma navegação à vista. Talvez por isso já se escreveu bastante sobre os seus “anos de ouro” – os de implantação e desenvolvimento – sem se ter deixado de apontar alguns disparates a Armando Jorge. Mas, apesar de não ser necessário retirar uma vírgula ao que foi escrito, os nomes de Mark Jonkers e Mehmet Balkan (que ainda fazem arrepios na espinha) e os de Jorge Salavisa e Luísa Taveira, fazem de Armando Jorge um verdadeiro génio. Para não dizer um histórico Balanchine que ele tanto desejou ser! Sem esquecer o nome da “benevolente” Isabel Santa Rosa – a única “prima ballerina” até hoje no coração do público português, mas que, na CNB, foi um flagrante erro de casting – e, é claro, o de Ana Caldas. Esse “prodígio” inventado pelo “comendador” José Sasportes e que, tal como Jonkers, nem sequer um pé alguma vez pôs em palco. Ficam todos para a História, quase sempre pelas piores razões! Alguns deles terão feito voar fortunas – sabe-se que as produções “kitsch” do turco Balkan custavam meio milhão de euros cada – mas Caldas foi a única directora na conturbada trajectória da CNB a ser condenada pelo Tribunal de Contas a devolver verbas ao erário público. Tal como o seu subdirector, depois promovido para a administração do S. Carlos e hoje na do D. Maria II!
É claro que o elo mais fraco tem sido os bailarinos que estoicamente têm segurado a companhia e aos quais não lhes foi proporcionado quaisquer meios para se reciclarem e, por tal, quase metade da companhia já recebe para não dançar! Uma situação degradante e insustentável, a todos os níveis.
Mas também há quem não queira trabalhar e, dentro da difícil conjuntura-sócio-económica que o país atravessa, é completamente imoral e inaceitável que um técnico superior esteja em casa há ano a receber quase 4000 € mensais. Que se saiba não está doente nem mentalmente impedido de “dar no duro” na parte técnica dos espectáculos! Mas ninguém põe cobro a tanta barbaridade.
Em resumo, a solução imediata para a CNB só pode estar em audições para uma equipe directiva nova, não baseadas na filiação político-partidária mas sim na capacidade de liderança e de apresentar uma programação coerente e consistente, para alguns anos, que demonstre excelência e visão e, já agora, um necessário toque de “portuguesismo”.
Uma companha nacional que não zela pelos seus artistas e reportório, de modo a preservar a Cultura do país, não tem muitas razões de existir! Se quase todos estão a dar uma boa oportunidade ao governo de começar a fazer contas – e a deixar perceber que a CNB se traduz num verdadeiro sorvedouro de dinheiros pagando a artistas e funcionários para estar em casa ou na plateia a aplaudir os colegas – o futuro próximo pode vir a ser negro. E um dia nem se safam os bailarinos que pensam e dançam com profissionalismo e muita vontade e têm empurrado o barco contra ventos e marés.
Até agora tem sido particularmente gravoso ninguém no governo se ter interessado em resolver o (escandaloso) problema da falta de público, da enviesada estética e das banhas financeiras da CNB que tanto têm prejudicado artistas, erário público e os amantes da dança. Mas quando alguém se lembrar de o fazer, se for com os “pés”, pode ser tarde demais.
António Laginha | director da Revista da Dança