IRINA GRJEBINA E A DANÇA DE CARÁCTER – MARIA JOÃO CASTRO

Fruto das tradições folclóricas húngara, ucraniana e russa – e também de algumas da raça cigana -, a dança de carácter constituiu-se numa forma de arte teatral cuja criação assenta não só nos fundamentos folclóricos dos citados países como foi sendo “esculpida” nas academias de bailado clássico, tornando-se uma disciplina própria, com uma técnica rigorosa que rapidamente se popularizou entre os mestres russos.
Marius Petipa desenvolveu grande parte do seu trabalho na Rússia, onde estudou as danças étnicas vindo, depois, a aplicá-las nos seus bailados estreados nos Teatros Imperiais. As grandes obras deste coreógrafo francês, sobretudo as gizadas em cima das emblemáticas partituras de Tchaikovski, contêm diversas danças de carácter, designadamente “O Lago dos Cisnes” cujo terceiro acto é, basicamente, um longa série de danças étnicas estilizadas.
Actualmente nas grandes escolas de dança internacionais, a chamada a dança de carácter foi relegada para um plano secundário, havendo cada vez menos estabelecimentos de ensino artístico a propô-la como matéria obrigatória.
Depois da revolução na Rússia, em 1917, muitos dos seus artistas emigraram para França e instalaram-se em Paris, trabalhando para os cabarets da época ou abrindo escolas de dança na capital francesa. Assim, entre os anos 20 e 60, a dança de carácter foi uma das mais populares em França, tornando-se, posteriormente, numa realidade bem conhecida por toda a Europa.

Uma das personagens que mais contribuiu para a boa reputação deste estilo foi a artista russa Irina Grjebina (São Petersburgo, 1909 – 1994).
Figura colorida e com uma personalidade vulcânica, ensinou aquela forma de dança com uma força e paixão difíceis de igualar. A sua energia e vigor – até uma idade avançada – era assombrosa e, para os que a conheceram, aprender e trabalhar com ela era muito exigente mas altamente compensador.
Aconselhada pelo crítico russo Akim Volinsky a “consagrar sua vida à dança” – in « Danse de Caractère » editada pela Amphora, em 1987, em Paris (p. 10) – Irina iniciou a sua formação em danças de carácter com Ivan Koussov, em Leningrado, seguindo, depois, uma carreira cénica sob a direcção de alguns dos maiores coreógrafos do século XX: Mikhail Fokine, Bronislava Nijinska, Boris Romanov, Boris Kniasev e Nicolas Legat.
Antes de deixar a Rússia com o seu amigo e famoso escritor, Máximo Gorki, o pai de Irina que era editor de arte, vai para Berlim com a sua família e só depois se fixa em Paris. Nessa cidade, a convite da grande bailarina Olga Preobrajenska, Irina torna-se, aos 15 anos assistente da ilustre mestra encetando uma carreira artística que perdurará por várias décadas pautadas por uma criação artística ímpar.
A sua longa carreira inicia-se no Ballet da Ópera de Genebra, em 1926, passando à Ópera Russa de Paris, companhia com a qual efectua várias digressões mundiais ao lado da sua irmã Lya Grjebina.
Irina dançou, posteriormente, nos famosos Ballets Russes de Monte Carlo, companhia herdeira dos Ballets Russes de Serge de Diaghilev, após a morte deste, em 1929.
Em 1946, cria com Lya Grjebina a École Choréographique du Ballet Russe e, mais tarde, funda a sua própria companhia, Les Ballets Russes Irina Grejebina composto por mais de uma quarentena de bailarinos. Esta companhia apresentou-se em palcos da Alemanha, Bélgica, Holanda, Espanha, Itália, Israel, Grécia, Magrebe, Canárias, Coreia e Portugal, com coreografias originais da sua autoria inspiradas no folclore russo, ucraniano, caucasiano e cigano.

Situada no nº 11 da Rue Jules Chaplain, em Paris, num antigo estúdio de pintura onde ainda funciona uma escola de dança, a Escola Coreográfica do Ballet Russo (e mais tarde Os Ballets Russes de Irina Grjebina) foi o local onde Irina, viveu, leccionou, estudou e divulgou o seu método pedagógico. O mesmo que, mais tarde, deixará explanado em livro. Ao longo da sua expressiva carreira foi escrevendo uma obra onde explica o seu método de ensino, divulga as suas pesquisas coreográficas e a sua visão da dança e da arte em geral. Com mais de mil páginas, curiosamente, o manuscrito aguarda (ainda hoje) publicação, no fundo de uma gaveta da casa do seu sobrinho.

Em 1976, Irina Grjebina recebeu a medalha da cidade de Paris pelo seu mérito artístico e, nesse mesmo ano, começa a ensinar dança de carácter na Escola de Dança da Ópera de Paris. Dois anos depois, o dinamismo que imprime às suas aulas e o entusiasmo que transmite aos seus alunos, leva a direcção do Palais Garnier (Ópera Paris) a encarregá-la de remontar a famosa coreografia de Fokine, as Danças Polovtzianas da ópera de Borodine “O Príncipe Igor”, para o Ballet da Ópera.
Membro da Associação Francesa dos Mestres de Dança Clássica, Irina continuou a assegurar os cursos de dança clássica da sua escola, criando numerosas obras e continuando “a viver a 120 quilómetros hora” (conforme se pode ler na obra de Nadege L. Loujine, Gérard Madilian e Suzanne de Soye, « Danse de Caractère » – p. 10).
Os Ballets Russes de Irina Grjebina – como era hábito na época – participaram em vários filmes: Le Joueur de Claude Autan-Lara, La Belle que Voilà, de Jean-Paul, Le Chanois, Le Triomphe de Michel Strogonoff e Pistonné, de Claude Berri, bem como em programas de televisão como Crime et Châtiment, De Taras Boulba à Gagarine, Vol 272, Memóire de Paris, Les Lendemains qui Chantent, eoutros.
Irina trabalhou em filmes como Le Retour à la Bien-aimée, Le Chinois à Paris, Une Affaire d´hommes, Le Soir Tous les Chats sont Gris e o seu talento e dinamismo fizeram com elevasse a dança de carácter a uma “arte balética” própria não só em França como em todo o Mundo impondo-se como uma verdadeira pioneira na divulgação e promoção da arte russa no Ocidente.

Assinalado na obra “Dançaram em Lisboa 1900 – 1994”, (de José Sasportes, Helena Coelho e Maria de Assis, Lisboa, 1994) a sua companhia deslocou-se a Portugal, pela primeira vez, em 1949.
Regressaria em 1964 para actuar Cinema Império (Lisboa), no Teatro S. João (Porto) e no Coliseu dos Recreios (Lisboa) e em 1966, apresentando-se então no Teatro S. Luiz, em Lisboa, no Teatro S. João, no Porto, no Teatro Avenida em Coimbra e em Santarém e Beja.
Segundo António Pinto Machado, director da revista O Ballet, no número 1, publicada em Maio de 1966, p. 22 “o espectáculo que a Companhia de Bailados Folclóricos Russos de Irina Grjebina apresentou em Lisboa no Teatro S. Luiz, reunia as condições necessárias para agradar ao público lisboeta”. A Companhia apresentou um programa variado incluindo peças da Grande Rússia e Bessarábia, Cáucasso, Transcaucásia e Ucrânia num “espectáculo de considerável nível artístico (…) O guarda-roupa foi muito apreciado e os bailarinos que se destacaram na crítica nacional foram, para além da própria Irina, Bronislaw Rajkowsky, Genia Danatova, Tamara Krassovskaya, Tonia Brouskova, Oxanna Lassovskaya, Laszlo Szabo, Stanislas Zmarzlik, Pero Vasic, Boris Alanikov, bem bem como as vozes de Luba Berezovskaya, Veronika Mikheeva, Alexandre Bohr e Mikhail Lermontov”.

Poder-se-á afirmar que a contribuição de Irina Grjebina, através das suas pesquisas coreográficas ao nível da dança de carácter, teve um alcance ímpar para o desenvolvimento e projecção daquele estilo não só em Paris, e na França, como forneceu matéria-prima sobre a qual alguns coreógrafos contemporâneos ainda hoje trabalham.
Apesar de tudo isso falta repor o lugar de Grjebina na história da dança europeia, bem como dar à estampa o seu precioso manuscrito. Certamente que surpreenderá, não só pela sua actualidade como pela abordagem que faz ao novo papel da dança de carácter no limiar do século XX.

BIBLIOGRAFIA ACONSELHADA:

– Danse de caractère, Nadège L. Loujine, Amphora, Paris, 1987
– Character Dance, Andrei Lopukov, Alexander Shirayev, Alexander Bocharov, Dance Books, Reino Unido, 1986
– Revista O Ballet, vários números, Lisboa
– Dançaram em Lisboa 1900 – 1994, José Sasportes, Helena Coelho e Maria de Assis, Lisboa, 1994

Published by Antonio Laginha

Autoria e redação

António Laginha, editor e autor da maioria dos textos da RD, escreve como aprendeu antes do pretenso Acordo Ortográfico de 1990, o qual não foi ratificado por todos os países de língua portuguesa.

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