A música de Tachaikovski, na mesma altura que Fernando Duarte na Companhia Nacional de Bailado, voltou a inspirar outro jovem coreógrafo português, Daniel Cardoso, director e fundador do Quorum Ballet, sedeado nos Recreios da Amadora.
Neste caso pode mesmo dizer-se que o título, “Lago dos Cisnes”, não será o mais apropriado para uma peça de dança que se passa num espaço que pretende ser um manicómio e cujas referências em comum com a obra de Petipa-Ivanov não vão além da partitura. Que o bailarino-criador até a usa com enorme liberdade alterando a ordem sequencial das danças e, por vezes, até “esquartejando” a composição musical.
Trata-se, seguramente, de um trabalho de fôlego em que Daniel Cardoso, para além dos seis bailarinos do elenco do Quorum, junta nove – ainda mais jovens – que se apresentam com objectiva determinação e empenho e um elevado nível de energia. Aliás, toda a dança, até nos momentos mais líricos da música, é bastante percussiva e, por tal, não revela grande contraste na composição coreográfica. É de salientar, contudo, que esta deve ser a peça mais solta – em termos técnicos – de Daniel Cardoso e em que o coreógrafo se apresenta com uma linguagem mais personalizada e até uma equipa que revela (uma desejável) coesão.
Enquanto a dramaturgia da peça – da autoria da actriz Ana Lázaro, não a bailarina com o mesmo nome – é muito pouco clara (para não dizer imperceptível) toda o bailado parece centrar-se e depender de uma enorme “parede” em forma de V insuflada, que tanto faz de sofá como divide o palco em dois. A sua resiliência provoca momentos de grande intensidade quando os bailarinos se atiram violentamente contra um cenário que se move durante todo o espectáculo e que domina todo o espaço. Esta engenhosa proposta foi concebida por Hugo Matos tendo as projecções que são jogadas na sua superfície (e aparecendo no momento certo e com conta, peso e medida) a assinatura de António Cabrita.
Os quinze bailarinos, quase sempre vestidos de branco por Liliana Mendonça, em certas danças surgem com balões e umas penas no rosto, a única referência aos cisnes e a um lago mais que imaginário.
Pena foi que, apesar da mais completa liberdade no tratamento do tema (e que deixava antever um trabalho surpreendente) a solução encontrada – circunscrever a dança a um inventado manicómio, exactamente onde o coreógrafo sueco Mats Ek colocou a sua versão do clássico “Giselle” – não tenha obtido resultados parecidos com outras versões verdadeiramente iconoclastas e absolutamente contemporâneas. Designadamente a do inglês Mathew Bourne e a de Ek. Só para mencionar as duas mais badaladas.
É que a popular obra de Tchaikovksi, por mais que os coreógrafos a queiram “tratar por tu” e, mesmo, entrar nas suas entranhas, tal como qualquer partitura monumental, revela-se não só antropófaga como desafia qualquer tentativa de banalização!
Esse parece ser o seu maior sortilégio, a sua incomensurável força e a sua absoluta longevidade.