Para quem não está a par das efemérides musicais – este ano celebram-se os 300 anos sobre a data de nascimento do compositor alemão Gluck – e das modas – Sophia de Mello Breyner é lembrada e citada a toda a hora e está a caminho do Panteão Nacional – mas se se interessa, verdadeiramente, pela arte da dança, poderá congeminar uma ligação entre cinco nomes que podem ter alguma coisa a ver uns com os outros, muito pouco, ou nada: Orfeu, Olga Roriz, Pina Bausch, Ópera de Paris e Companhia Nacional de Bailado (CNB).
É que a companhia de ballet da ópera parisiense recebeu, em 2005, do Tanztheater de Wuppertal – que a criara três décadas antes e a Arte filmou-a três anos depois e está disponível em permanência no espaço virtual – uma peça de sucesso de Bausch intitulada “Orfeu e Eurídice”. Com um título (exactamente) igual ao que a CNB agora encomendou à coreógrafa de “Pedro e Inês”.
Qualquer das produções, tendo por inspiração a obra homónima de Gluck, sobre o chamado “mito de Orfeu” baseia-se, em traços grossos, na tentativa corajosa, mas fracassada, do poeta e médico, filho de Calíope e de Apolo ou Eagro, rei da Trácia, de resgatar sua amada Eurídice das garras do mundo das trevas. Trata-se, pois, de um tema intemporal, prenhe de qualidades e virtudes e imensas potencialidades na área filosófica e estética, porém, totalmente asséptico para a dança numa época de sucessivas guerras, temores e convulsões em que não há coreógrafos portugueses que tenham unhas – e vísceras – para pegar numa companhia e se embrenhar por fados mais interventivos e menos decorativos! A verdade é que a versão portuguesa, ainda que menos poética que a alemã, com movimento menos fluído e, sobretudo, com uma deliberada tensão e uma urgência formal, nunca nos atinge no estômago. Talvez para isso contribuam os dois lados de uma mesma moeda, uns figurinos pesados nem sempre consentâneos com a narrativa e questionáveis na sua eficácia ainda que, frequentemente, ampliem os movimentos e umas roupas interiores e botas negras de tropa que deixam os corpos desprotegidos e nada erotizados. A estranheza é bem menor no que concerne à simples e discreta cenografia. O proscénio apresenta-se escuro e a arquitectura teatral, praticamente, resume-se a quatro grandes colunas espelhadas na base por onde, no fundo do palco, os artistas entram e saem com frequência. Ambos são da autoria de Nuno Carinhas, um colaborador de longa data de Roriz. E iluminados com a habitual perícia e sensibilidade por Cristina Piedade que, no caso, encontra algumas soluções muito apropriadas para fazer sobressair conjuntos e solistas em situações de conflito ou de simples encontros amorosos.
Embora não seja especialmente importante fazer um paralelo entre as obras supra citadas, se em muitos momentos da peça da já desparecida coreógrafa germânica ela quase parece (como um gesto de graciosidade), citar Martha Graham, Roriz, que tem usado e abusado da estética “bauschiana”, desta vez, cita-se a ela própria. É fácil detectar não só um repetir de “clichés” – mulheres com cabelos selvagens e troncos ondulantes e homens abrutalhados com vestidos compridos, correrias sem grande tino, quedas forçadas, atropelos e embates entre corpos, espasmos e soluços – mas também uma débil definição das personagens principais (Orfeu, Eurídice e Amor, trio que também aparece na estrutura da peça de Bausch à frente de um extenso conjunto de bailarinos) e que são, sem grande espanto, as maiores fraquezas desta obra, estreada no Teatro Camões na época carnavalesca. Numa altura em que o país está a braços com uma enorme crise, obras de pendor menos dramático certamente atrairiam um público mais alargado em dias de tradicional descompressão. Mas, nesse particular detalhe, a directora artística da CNB, Luísa Taveira, já nos habituou ao total “desencontro” em termos da calendarização dos espectáculos da companhia.
Numa perspectiva puramente espacial a mancha de bailarinos em cena e de cantores e músicos – estes colocados ao nível do público pois, deliberadamente, não se tem utilizado o fosso de orquestra – quase se comparava, na noite da estreia, pejada de convidados mas em que o teatro nem sequer encheu, à dimensão da dos espectadores! É que na CNB em vez de se preocuparem em dançar bem, de um modo criativo e ter um público saído daqueles que com os seus impostos pagam as suas temporadas, parecem bem mais focados em organizar conferências sobre literatura… Já é hábito os convites a gente que nada tem a ver com a arte de Terpsícore para dispendiosos fogos-fátuos que, desta vez, se traduzem num ciclo de conferências. Será que ainda há quem não perceba que a Faculdade de Letras e outras instituições universitárias levam a cabo essas iniciativas bem melhor e no sítio certo?
A nova dança de Roriz, mais ensopada de intenções do que verdadeira intensidade dramática, lança-se em cena de um modo pouco exigente com uma espécie de introdução em que os bailarinos – quase toda a companhia – mais não fazem que andar (com visível urgência) e correr desenfreados em todas as direcções. Em termos de composição coreográfica este arranque não podia ser mais básico e menos apelativo. Mas a coreógrafa de Viana do Castelo recupera a sua geografia espacial ao concentrar-se nas figuras centrais e, sobretudo, em Orfeu interpretado por Carlos Pinillos (na noite de estreia) pois a figura do Amor nem perceptível é e a da amada Eurídice (Filipa Castro) nunca chega a afirmar-se num espaço amoroso dentro da personagem que lhe corresponde. Há, contudo, um momento, o mais feliz na peça, em que os protagonistas interpretam um belo dueto prenhe de registos amorosos e de total entrosamento com a música e a atmosfera operática. Por outro lado, os supostos pastores, ninfas, demónios, fúrias e espíritos – conforme a narrativa – convertem-se numa massa padronizada de corpos em frenesim, que no epílogo permanecem inanimados e abandonados nos seus labirínticos contornos emocionais, por onde acabam por transitar os dois amantes.
A conhecida e bela ária “Che farò senza Euridice ?” de “Orfeo ed Euridice” (1762), cantada pelo coro, surge no final da peça como um momento de profunda empatia entre som e movimento, a par de cenas que parecem roubadas a uma obra de Roriz dos tempos da Gulbenkian, “Violoncelo Não Acompanhado” (na qual já apareciam roupagens com um corte semelhante e uma venda nos olhos do protagonista) e ao segundo acto do Lago dos Cisnes em que um mesmo Carlos (Pinillos) ainda há uns poucos meses procurava Filipa, sua repetida amada, no mesmo palco, no meio dos “mesmos” cisnes… agora inanimados no solo. Porém, no clássico de Petipa-Ivanov, Siegfried o herói, não morre debaixo de uma chuva de botas atiradas com raiva, como o infeliz Orfeu!
A série de espectáculos agendada, que dura mais de duas semanas, é musicalmente acompanhada pela orquestra Divino Sospiro – conduzida com verve e segurança pelo italiano Massimo Mazzeo – o Ecce Ensemble e o Coro da Escola Superior de Música de Lisboa. Estranho é que no programa se omita o nome dos cantores solistas que, pontualmente, cantam algumas das partes de Orfeu e de Eurídice!
Apesar da esforçada interpretação de Pinillos no papel titular e do “timing” perfeito do bailado, cerca de uma hora e nem mais, Roriz cristalizou no seu próprio estilo e num conceito teatral já muito gasto, nunca indo muito além do lugar-comum. Apesar das boas intenções – amplamente debitadas para a imprensa pela coreógrafa – a obra nunca penetra nos infernos da mente nem chega ao paraíso que a partitura musical, por vezes, insinua, ficando-se numa espécie de limbo pouco corajoso e, sobretudo, nada estimulante para o corpo de baile. Mas a verdade insofismável é que a CNB não é a Ópera de Paris nem Olga Roriz a defunta Pina Baush e, muito menos, George Balanchine que, na sua singularidade, abordou o mito de Orfeu numa óptica mais balética a partir de… Stravinsky!
Na verdade, quando havia muitas alternativas para Olga Roriz ela, objectivamente, enveredou pelo caminho mais fácil. Porém seria injusto afirmar que tudo se resume a… “mais do mesmo”!
FOTOS: Rodrigo de Souza / CNB