Assim que se ouviram os primeiros acordes de Tchaikovski, na nova versão do “Lago dos Cisnes” que a Companhia Nacional de Bailado (CNB) apresentou no Teatro Camões, o espectador foi, de imediato, colocado entre dois fogos: os artistas em palco e as imagens que se desmultiplicam no ecrã. E, desde logo, se instala a dúvida na plateia – qual drama shakespeareano – dança ou filme, eis a questão!
A obra começa toda em mansidão como uma espécie de memória inventada. Com as brumas de Sintra por cenário e umas danças mornas num salão de uma corte imaginária, toda em tons de cinza. Aí não falta o habitual príncipe confuso e a sua mãe, enviuvada a negro, e mais rapazes e raparigas com roupas de fino corte, mas normalizadas como em nenhuma corte, criando um artificialismo “fashion” que percorre toda a obra. Depois surge todo um manancial de imagens borbulhantes de água em superfície ou repuxos. Muita água no segundo acto – até faz pensar que o mecenato da CNB passa da EDP para a EPAL – e belas vistas do palácio da Ajuda, após o intervalo. Tudo transposto para o ecrã num processo quase avassalador e caleidoscópico. Porém, em cena, nada de drama, nenhum bobo (na corte) e nem as alegres e costumeiras danças “étnicas” – ou melhor, a única dança de “carácter” é um solo feminino, bem interpretado por Barbora Hruskova no III acto – tendo-se suprimindo o habitual contraste cromático (e de clima) entre actos. Em determinada altura do espectáculo percebe-se que o frenesim visual instalado atrás dos artistas se revela incompatível com a acção que se tenta fazer viver no proscénio. Os dois discursos que, naturalmente, se pretendiam paralelos acabam digladiando-se ente si. É pena que tenha faltado mais controlo na mão de Edgar Pêra para que a sua proposta de “Cine- Lago dos Cisnes” resultasse mais consentânea com os objectivos traçados pelo próprio realizador e que aparecem impressos no programa. Bastava que muitas das imagens se dissolvessem lentamente em vez de brotarem em catadupa impondo-se, quantas vezes, pela sua intrínseca beleza. A título de exemplo refira-se que, para a dança dos “cygnettes” a CNB (como está na moda nos cinemas) devia fornecer óculos aos espectadores já que o reflexo das águas projectadas quase chega a ofuscar o rigoroso trabalho das quatro mecânicas bailarinas: Catarina Grilo, Charmaine Du Mont, Seong Moon e Inês Moura.
Os chamados Cisnes Grandes – Anna Blackwell e Maria Santos – que se lhes seguiram, também mostraram garra e boas qualidades elevatórias, leia-se “balon”. Mas estas podiam ter voado mais alto… Aliás, refira-se que o número de mulheres-aves em palco é bastante reduzido, como também o é o de bailarinos nacionais que, realmente, dançam. A CNB está exactamente igual como, há 36 anos, quando a sua actual directora, Luísa Taveira, não tinha um parceiro nacional com quem dançar o papel de Odete. Ou pior, pois neste momento a companhia tem uns 75 bailarinos assalariados e mais de metade não vai para o palco. E o mais estranho é que a SEC e o governo continuam a fechar os olhos a este inaceitável desperdício e, em muitos casos, faltando com verbas onde mais se devia apostar. Também parece bizarro que se escolha um reportório para o qual não se tem bailarinos já que todos os “Siegfrieds” são estrangeiros, sendo um residente e dois convidados, bem como os rapazes que desempenham a totalidade dos papéis solísticos masculinos.
Voltando aos “arranjos coreográficos” da autoria de Fernando Duarte, que não são particularmente memoráveis, eles tentam evocar uma história algo esquartejada e que quer encontrar um espaço entre uma visão contemporânea e um estilo com mais de cem anos.
Porém não há mímica que resista a imagens gigantes e de um virtuosismo estonteante, atrás de uns bailarinos que insistem em debitar uma velha lenda. É que em termos dramatúrgicos a transposição da importante personagem Rothbart para o ecrã – a terceira em hierarquia no bailado – torna o discurso inconsequente, bem como a paixão e o drama dos protagonistas.
Quanto aos bailarinos principais, na estreia, Carlos Pinillos e a sua mulher Filipa Castro, são dignos de nota muito positiva. O jogo cénico dos amantes é bem conseguido embora Filipa dê melhor conta de Odília, no 3º acto, do que de Odete no 2º. Nos chamados actos brancos, a bailarina deixa transparecer alguma falta de maleabilidade no tronco, o que lhe retira a espiritualidade que o papel, evidentemente, requer. Contudo, a sua prestação no Cisne Negro, tecnicamente falando, foi de alta qualidade demonstrando endurance e consistência ao longo do difícil “tour de force”. Já Pinillos, um “danseur noble avant la lettre”, esteve sempre à vontade nos malabarismos técnicos, com o “aplomb” e a “finesse” que lhe são peculiares. Dir-se-ia mesmo, que algumas das variações “habituais”, apareceram algo “facilitadas”, coisa que o seguro e maduro artista não necessita. Muito pelo contrário.
De um modo geral as cenas de conjunto mostraram bailarinos elegantes e sóbrios nos figurinos de José António Tenente. Cesário Costa esteve bem na condução da Orquestra Metropolitana de Lisboa embora muitos dos “tempi” orquestrais tivessem sido deliberadamente alterados pelo coreógrafo. Assim, o que a lentidão fez ganhar em souplesse roubou em virtuosismo. Também a falta de volume de uma orquestra manifestamente reduzida não ajudou a dar “pathos” e monumentalidade a uma das mais líricas e sentimentais partituras do mestre russo.
Mas se este Lago começou com um dilema acabou, definitivamente, com um trilema. Com duas versões em armazém será que valeu o esforço financeiro para se “brincar” aos patinhos com cinema?
A verdade é que em tempos de crise económica a direcção da CNB ao dar-se a este luxo deveria, de seguida, ser obrigada pela SEC a rodar por Portugal inteiro. Não só porque o espectáculo é acompanhado por uma orquestra encolhida como utiliza um corpo de baile três vezes menor que o habitual. Como não tem cenografia e os figurinos podem viajar em cabides (as saias do primeiro acto mais parecem esfregonas e os tutus dos cisnes são murchos e escorridos) este “Lago” pode, finalmente, fazer concorrência às companhias russas que percorrem o país e ganham dinheiro com dança. Coisa que a direcção da CNB nunca soube fazer. Só, mesmo, o contrário !Esta parece, pois, ser uma das poucas, senão a única vantagem deste tipo de aventureirismos, já que as últimas produções da companhia estão todas no baú do esquecimento duvidando-se que alguma vez se vá voltar a ver, por exemplo, aquele que foi um dos maiores “flops” da sua história e que se chamou (carinhosamente) “perda preciosa”! Perda (de tempo) sim… e altamente dispendiosa.
Após a estreis do bailado a CNB e a CML levaram a efeito uma homenagem à fundadora da CNB, Luna Andermatt.
Maria Antónia Luna Andermatt Brás de Oliveira nasceu em Lisboa, 23 Novembro de 1925, e o bailado entrou na sua vida no Instituto de Odivelas (IO) quando ingressou na 3ª classe, pois “gostava muito das aulas de ginástica, especialmente quando faziam ginástica rítmica” (1). Só começou verdadeiramente a dançar quando saiu do IO e descobriu a sua vocação, tendo frequentado as aulas da professora Margarida de Abreu.
Ao terminar o liceu inscreveu-se no Conservatório Nacional, contra a vontade da família que não via com bons olhos a profissão da dança. A mãe, Maria João Luna Andermatt (professora, iluminista e primeira presidente da Associação das Antigas Alunas do Instituto de Odivelas) e o então namorado Francisco de Assis Brás de Oliveira (Lisboa, 1929) e que mais tarde viria a ser o seu marido e director técnico e artístico da CPB), apoiaram a sua decisão.
Segundo a própria “tinha uma força de vontade selvagem, muita tenacidade e empenhamento. Praticava de manhã, à tarde e à noite, horas e horas seguidas e, só após o exame final do CN – no qual dançou três peças e passou “com distinção” – é que o resto da família se rendeu à sua opção de vida. (1)
Em 1953 segue para Londres, como bolseira do Instituto de Alta Cultura, onde frequenta a escola do Sadler’s Wells e onde trabalhou com o mestre russo Goncharov. “Londres era outro mundo e a arte da dança uma coisa muito diferente de Portugal. Fiquei fascinada com a escola, os espectáculos, toda a vida do bailado, as pessoas em si, tudo era diferente. Um grande civismo. Adorei. (2) Passado um ano regressa a Portugal, com uma bagagem artística muito maior e a cabeça cheia de ideias de coisas que se poderiam fazer no nosso país onde o ‘ballet’ era uma arte bastarda. Oficialmente, ninguém conseguia dignificar a profissão de bailarino e ‘oficializar’ a arte da dança. Em 1954, entrou como bailarina principal para o Círculo de Iniciação Coreográfica (CIO). Dois anos mais tarde, criou nas instalações do Teatro Nacional de São Carlos o Centro de Estudos de Bailado do Instituto de Alta Cultura com o objectivo de formar bailarinos para uma futura companhia. Entretanto, fez cursos de especialização no país e no estrangeiro, tendo trabalhado com os professores Preobrajenska, Egorova, Gzowsky e Nora Kiss. Também passou uma temporada na escola da Ópera de Paris.
Em 1961, juntamente com o marido, Francisco de Assis Brás de Oliveira (um bom conhecedor do meio e respeitado por muitos elementos das direcções dos várias instituições oficiais), cria a Companhia Portuguesa de Bailado com a intenção de se transformar numa companhia nacional, coisa que só viria a acontecer em 1977 de Bailado.
Nos anos seguintes “lutou com toda a sua energia pela dignificação e qualificação do bailado em Portugal pois foram milhares de horas e milhares de quilómetros calcorreados entre ministérios que haveriam de ter um final feliz: em 1977 o então Secretário de Estado da Cultura, David Mourão Ferreira, oficializou a o Projecto apresentado para a criação da Companhia Nacional de Bailado” (2)
Em 1977, realiza finalmente o seu sonho e cria a Companhia Nacional de Bailado – tendo chamado Vera Varella-Cid e Pedro Risques Pereira para lhe darem apoio – aquela, pela segunda vez, no mesmo Teatro de São Carlos. Luna Andermatt, paralelamente às suas actividades artísticas (fundadora, directora artística e primeira bailarina da Companhia Portuguesa de Bailado, em 1961 e fundadora e co-directora artística da CNB em 77) e pedagógicas, sobretudo no seu estúdio de dança, fundado em 1955 e na escola de bailado clássico do Teatro Nacional de S. Carlos, entre 55 e 63, foi uma incansável divulgadora ao produzir e apresentar os programas (juvenis) da RTP “Metamorfoses da Dança” (sobre a história do bailado nos anos de 66 e 67) e “Do Estúdio ao Palco – rubrica de divulgação do bailado (sobre os bastidores do espectáculo entre 70 e 71). Ambos foram escritos e apresentados de parceria com Vera Varella-Cid e com a colaboração de várias personalidades ligadas ao meio balético português.
Em Dezembro de 2011 participou em espectáculos da Companhia Maior no CCB e em no Dia Mundial da dança de 2012, – 29 de Abril – o Centro de Dança de Oeiras e a Revista da Dança, homenagearam-na no Auditório Municipal Eunice Muñoz.
“Maria Antónia dedicou a sua vida à causa da dança, desenvolvendo uma acção pioneira e particularmente contributiva no que concerne a divulgação do bailado e a criação de estruturas oficiais no nosso país”.
Miguel Lyzarro
Notas:
(1) “Luna Andermatt, grande impulsionadora do bailado em Portugal” por M. Margarida Pereira-Müller in “REVISTA do INSTITUTO de ODIVELAS”
(2) Entrevista com LA – Dez 2012