MONTPELLIER: O PASSADO, O PRESENTE E O FUTURO …

António Laginha, em Montpellier
Na sua 30ª edição, o Festival de Montpellier – que decorreu entre 18 de Junho e 7 de Julho – mostrou um pouco de passado, bastante presente e, seguramente, algumas propostas que apontam (definitivamente) para o… futuro.
Para além da enorme vitalidade da criação contemporânea, em todo o seu impressionante ecletismo, Montpellier orgulha-se também de exibir uma Cidade Internacional da Dança – a Agora – onde funciona o Centro Coreográfico Regional (da região do Languedoc-Roussillon), com um belo teatro dentro de uma magnífica estrutura arquitectónica onde em tempos funcionou uma prisão e o Convento das monjas Ursulinas.
Este ano o festival acolheu nada menos que 161 jornalistas – 24 estrangeiros – e 240 programadores e profissionais da dança, vindos de 45 países.
A história do evento, foi exemplarmente detalhada numa publicação especial “MONTPELLIER DANSE(s) trente ans de création”, editada por Actes Sud, sob a direcção do director do festival, Jean-Paul Montanari.

Outro nome presente – ainda que em memória e em homenagens várias -, foi Dominique Bagouet, o falecido fundador do festival e a alma do supra citado centro coreográfico.
Como é costume, para além de espectáculos de alta qualidade, o certame traz sempre associada uma panóplia de eventos relacionados com dança, tais como exposições, colóquios, mostras coreográficas informais, apresentações de vídeos, conferências, visitas e fóruns de discussão com críticos, etc.
Já na recta final do evento apresentaram-se alguns espectáculos e companhias dignas de nota, nomeadamente, o Nederlands Dans Theater, o Ballet Béjart e a Companhia Lines, de Alonso king, para além de projectos de Matilde Monnier, Raimund Hogue e Bengolea-Chaignaud.
Se Tivessem Ficado Imóveis …

O iconoclasta duo Bengolea-Chaignaud levou ao festival três propostas que levantaram algumas questões uma certa celeuma. O último espectáculo fechado num estúdio da Agora, inusitadamente, intitulado "Sylphides", parte de uma ideia curiosa e muito bem engendrada. Uma figura feminina dominadora, vestida de negro esvazia o ar de três almofadas gigantes (com a ajuda de uma aspirador) encontrando-se dentro delas, imóveis, outras tantas pessoas que parecem embalsamadas. O efeito de imobilidade é perfeitamente conseguido porém, quando os três regressam à “vida” e desatam aos pulos, a graça do insólito, do rigor da acção e do inusitado, perde-se completamente, já que os últimos cinco minutos de performance são aterradores na sua indigência coreográfica, mexendo-se cada um dos três bailarinos de um modo descontrolado e totalmente desinteressante. Se tivessem ficado imóveis …
Coreografia Monumental
O Nederlands Dans Theater (NDT), trouxe de Haia uma trilogia de obras de Jiri Kylián, extremamente bem executadas, que pretendiam fazer uma curta retrospectiva de coreógrafo checo. Começando pala última, “Sinfonia dos Salmos”, estivemos em presença de uma das mais copiadas peças dos tempos áureos de Kylián no NDT. A sua impressionante cenografia – um imenso patchwork conseguido à custa de tapetes persas pendurados no ciclorama – aliada a uma música (Stravinsky) imponente e poderosa, deram boa réplica ao trabalho dos bailarinos que se exibiram com verve e grande sentido musical como, aliás, a monumental coreografia o exige. As peças anteriores, “Whereabouts Unknown” e “Mémoires d’Oubliettes” – esta última em estreia francesa – mais modernas e vibrantes foram muito bem recebidas por um teatro cheio e entusiasta.
Extensão Balanchiniana
Se o Ballet Béjart constituiu uma esperada decepção – apesar de todas as peças do mestre marselhês terem sido muito bem dançadas – já o Lines Ballet, de Alonso King, foi, para além de uma boa surpresa, uma presença muito estimulante. Diria, mesmo, marcante.
Duas peças exibidas, “Refraction”– filmada para o canal Arte – e “Dust and Light”, não muito diferentes, mostram que a proposta de King é uma espécie de extensão do trabalho de outro norte-americano famoso, William Forsythe. Na rota de Balanchine, ambos os coreógrafos transformam a dança clássica revirando-a, empurrando-a para o solo, mas mantendo um raro virtuosismo.
Porém, King que é de raça negra – e, seguramente, não alheio ao modo de ver o género e de pensar a “integração social” nos EUA – coloca lado a lado artistas brancos e negros, num caleidoscópio impressionante de corpos e numa bem articulada mistura de técnicas que resulta numa notável amálgama de corpos e de movimentos.
Erosão do Tempo
Por muito que Gil Roman se esforce por manter viva a memória coreográfica de Béjart, a verdade é que o tempo tem sido inclemente com a sua obra. Já em vida fora criticado por alguns pela sua relação de cumplicidade com a técnica clássica imposta a grandes conjuntos – quase sempre masculinos – e tratando de temas algo exóticos e de cariz filosófico. Um triangulo amoroso, “Sonate à Trois” datado de 1957 com duas mulheres em pontas e um homem completamente perdido no meio de piruetas e “tours en l’air”, foi difícil de digerir. A segunda obra na calha foi o conhecido “Webern Opus V” (1966), em tempos dançado pelo Ballet Gulbenkian. Trata-se de um dueto algo balanchiniano que se aguentou bem e que dançado por dois artistas com química continua a ser um prazer para os olhos. A terceira obra, “Dialogue de l’Ombre Double” (1998) não primou pela criatividade de linguagem, apesar do humor desbragado e de uma pouco convencional dramaturgia. A música de Pierre Boulez também não foi uma mais valia, 12 anos após a criação da peça.
Com um cenário geométrico esmagador – grandes círculos iluminados colados ao ciclorama – “Le Marteau Sans Maître” (1972) exibe uma figura feminina e seis homens, para além de um grupo de “kuragos” (figuras de negro roubadas ao kabuki japonês e que servem para complementar a acção), que se mexem ao som de uma partitura também de Pierre Boulez, cantada por uma intérprete que nunca aparece. Uma bailado abstracto de impacto que põe em evidência o trabalho da bailarina e impõe o “credo” bejartiano no que toca a uma exposição masculina sempre dominante.

In Memoriam
Os dois coreógrafos escolhidos para se apresentarem no Teatro de Grammont – um delicioso oásis no meio dos campos construído sobre um celeiro – foram o alemão Raimund Hogue (nome sempre ligado a Pina Bausch) e Mathilde Monnier cuja associação a Bagouet é bem conhecida.
Hogue, com os seus seis bailarinos de excelente presença cénica encenou um espectáculo, “Si Je Meurs Laisse le Balcon Ouvert”, de três longas horas em que faz o habitual. Tira a roupa para mostrar o seu corpo disforme, utiliza músicas conhecidas (“oldies”) para se passear ou desfilar em palco, deixa os seus intérpretes improvisarem e falam basatnte entrando e saindo de cena de um modo aleatório ou bem organizado como se, por vezes, se tratasse de uma espécie de rito funerário.
Idolatrado pelo público presente, o artista alemão não deixou de congeminar um trabalho que apela aos sentimentos e às “recordações” de defuntos mais ou menos conhecidos. Para além de Bagouet, a quem a peça foi dedicada, a sombra de Pina Bausch também não esteve ausente num altura em que passou exactamente um ano sobre a sua morte.
Soapéra
Mathilde Monnier, a directora do Centro Coreográfico de Montpellier, optou por se encostar a um artista plástico (Dominique Figarella) que concebeu uma imensa bola de espuma de onde saíram três homens e uma mulher ao fim de muito tempo de imobilidade e de penumbra. O efeito é excelente. Durante muitos minutos, no escuro, ninguém percebe que debaixo daquela espuma estavam os artistas, três rapazes e ua rapariga. Depois, a pouco e pouco vão saindo e fazendo uma ou outra corrida, uma ou outra queda, uma ou outra brincadeira, como se de uma festa de espuma sobrassem os restos. Tal como no quarteto de Bengolea-Chaignaud, a ideia mestra e o “suspense” funcionaram lindamente mas, quando chegou a hora de produzir movimento, o desinteresse atacou os artistas que se limitaram a mexer (pelos cantos do plateau) com uma vontade pouco convincente e de uma forma nem sempre estimulante.

Published by Antonio Laginha

Autoria e redação

António Laginha, editor e autor da maioria dos textos da RD, escreve como aprendeu antes do pretenso Acordo Ortográfico de 1990, o qual não foi ratificado por todos os países de língua portuguesa.

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