O Ballet Gulbenkian (BG) nasceu a 11 de Maio de 1961, no Teatro São João no Porto, como o nome de Grupo Experimental de Ballet. Em 65 alteraram-lhe o bilhete de identidade e passou a chamar-se Grupo Gulbenkian de Bailado. Dez anos depois – e já adolescente – adquiriu o nome com que viria a apresentar-se em quatro dos cinco continentes… e também a ser aniquilado em Julho de 2005.
Se fosse vivo e estivesse de boa saúde – com boas finanças, naturalmente, e força anímica e criativa – faria daqui por dois meses 54 anos… Mas porque as realidades artísticas no nosso país estão longe de ser as mais convenientes e, sobretudo, as que os seus artistas (verdadeiramente) mereciam, agora – mais precisamente em 12 de Março de 2015 – colocaram-se-lhe coroas de flores e “rezou-se” pela sua alma, justamente, no local onde deu o seu último suspiro, o Teatro Camões.
Muitos dos seus antigos bailarinos deslocaram-se ao Parque Expo – em Lisboa – para participar numa homenagem à mais conhecida e expressiva companhia portuguesa do século XX. E um marco incisivo daquilo a que se poderá, com grande propriedade, chamar de (alta) cultura nacional.
Em boa hora a Companhia Nacional de Bailado (CNB) resolveu homenagear o grupo criado por Madalena Perdigão e de onde saíram o seu director de maior longevidade, Armando Jorge, dois dos bailarinos principais (dos seus primeiros anos) Maria José Branco e Miguel Lyzarro (1950-1996), de onde veio um coreógrafo nacional de nomeada, Carlos Trincheiras (1937-1993), e até artistas plásticos, músicos e outros colaboradores que marcaram a ouro o seu trabalho em prol do inquestionável sucesso do agrupamento da Gulbenkian. Na plateia estiveram, para além de Carlos Caldas – um dos nove membros fundadores do GEB – artistas que dançaram nos primeiros anos da companhia tais como Elisa Worm, a conhecida actriz Lídia Franco, Maria Bessa, Ulrica Caldas, Cecília Potier e Carmen Galindo. A própria Fundação Calouste Gulbenkian associou-se a uma “festa” em que, uma década após o desaparecimento do seu grupo de dança, se comemora a ténue recordação de um valoroso agrupamento que uma administração (de comum acordo) resolveu liquidar há quase uma década!
No que toca ao programa da soirée, formalmente bem construído, é, porém, difícil perceber qual foi o critério artístico adoptado já que a única coisa em comum nas quatro peças interpretadas foi um elemento em que a companhia da Praça de Espanha era “useira e vezeira”, o uso de sólidas cadeiras de madeira. O que, diga-se de passagem, não critério nenhum! Na realidade, a abertura com “13 gestos de um Corpo”, de Olga Roriz, parece totalmente justificada já que foi o segundo bailado mais dançado no Grande Auditório da Gulbenkian, mas, para fechar, a escolha óbvia seria o glorioso “Messias”, de Lar Lubovitch, dançado 140 vezes em todo o Mundo e, provavelmente, a peça mais emblemática dos seus anos áureos.
O conjunto formado por treze rapazes, em geral, estiveram muito bem – haverá também um elenco totalmente feminino nos espectáculos ulteriores, como na Gulbenkian – com energia, determinação e técnica especialmente apurada. A peça, com uma estrutura básica e bastante clara, desenvolve-se num registo canónico entre treze cadeiras e um enorme painel onde se rasgam outras tantas portas. Delas saem e entram os artistas de calças e casacos e, tal como o cenário, os figurinos foram assinados por Nuno Carinhas, com uma iluminação particularmente dramática (do já desaparecido Orlando Worm). Na opinião de muitos, assistiu-se à peça de maior impacto da coreógrafa de Viana do Castelo que, a própria remontou em várias companhias no estrangeiro.
A obra seguinte – que, curiosamente, não pertenceu ao reportório do BG – foi uma estreia absoluta e surgiu como uma escolha conveniente e em forma de homenagem, não só ao coreógrafo Vasco Wellenkamp, como à sua musa inspiradora e ajudante dedicada, a bailarina Graça Barroso (1950-2013). O autor de “Danças para um Guitarra” (a terceira obra mais dançada pelo BG) merecia, inquestionavelmente um lugar neste programa, até porque coreografou alguns dos mais belos duetos da história da dança portuguesa. Embora tenha sido um director pouco mais que medíocre da CNB e o seu trabalho há muito tenha cristalizado em torno de uma “estética” vagamente “kyliana”. Assim, Wellenkamp optou por uma sequência de três duetos, sobre música de um país onde trabalhou bastante, o Brasil. Com um piano em cena, “Será que é uma Estrela?” obviamente inspirou-se e teve o belíssimo acompanhamento de três canções clássicas brasileiras na voz da “miss jazz”, Maria João, com João Farinha ao piano. Irina Oliveira e o recorrente Miguel Ramalho, enrolaram-se e incendiaram-se numa sentida dança tendo por “cama” uma cadeira e as tábuas do próprio palco. Nesse trabalho, em que o coreógrafo espelhou publica e sentimentalmente uma relação que começou no BG, inevitavelmente, o dueto de abertura quase se resumiu a um momento de citações em que a sombra de Barroso se agigantou em peças como “Outono” (que dançou ao lado de Carlos Caldas), “Memória para Piaf” (partilhada com Gagik Ismailian) e algumas outras com outros parceiros, como Ger Thomas e Benvindo Fonseca. Seguiu-se outra canção de amor ilustrada por Inês Ferrer e Tiago Coelho vestidos com roupas leves que transitaram entre corpos com avanços e recuos e simulações de imagens envoltas em ardente paixão. Ramalho e uma cadeira acompanharam Andreia Mota na última e bela canção, “Beatriz”, que Carlos Trincheiras tão bem coreografou no “Grande Circo Místico”. Wellenkamp, ausente do Teatro Camões, foi igual a si mesmo, misturando emoção e memória, soluços reprimidos, lágrimas secas e suspiros mudos numa obra prenhe de doçura e inquietação mas em que a voz de Amália e a guitarra de Carlos Paredes – a quem tanto deve artisticamente – estiveram ausentes…
O terceiro criador eleito pela direcção da CNB para esta espécie de “gala” foi um coreógrafo de primeira água que o director croata do BG, Milko Sparemblek, nos anos 70 planeara trazer a Lisboa mas que só chegaria a Portugal tempos depois pela mão de Jorge Salavisa, o holandês Hans van Manen. Dele aparecem no top 10 do reportório do BG duas obras seminais, “Canções sem Palavras” e “Cinco Tangos”, bailado que, por sinal, a CNB já dançou no passado mas de um modo pouco convincente e algo “despersonalizado”. A primeira, datada de 77, seria uma opção sensata e inteligente, pois Mendelssohn é “ouro” para os ouvidos e o engenho coreográfico de Manen um bálsamo para os sentidos. Mas a escolha recaiu numa peça diametralmente oposta, dançada por uma bailarina clássica em saltos altos (grande novidade para a época), com música de John Cage para piano preparado – cordas entrelaçadas com bocados de borracha – tocado por Paulo Pacheco, e uma tela em que se reconhece uma paisagem industrial ao fim da tarde. “Crepúsculo” (1972), assim se intitula, foi dançado na CNB por Barbora Hruskova – que voltou pela segunda vez da sua anunciada reforma (fez o seu espectáculo de despedida no Camões o ano passado em “Giselle”) – e Carlos Pinillos, que antes dançara o último e mais expressivo solo de “13 Gestos”. Curiosamente este par é bem mais parecido com os seus intérpretes originais – os holandeses Alexandra Radius e Hans Ebbellaar – do que os que brilharam na Gulbenkian: a soberba Isabel Queiroz (1948-2007) e o monumental (holandês) Ger Thomas.
Pinillos, como é hábito, mostrou que é o bailarino mais maduro da companhia e isso não foi surpresa. Viril, concentrado e atencioso soube ser cortês e um excelente apoio de Barbora que brilhou em cena mostrando mais rigor e perfeição técnica que verdadeira assertividade interpretativa. Uma característica do seu carácter em palco e que soube ultrapassar brilhantemente em ”A Perna Esquerda de Tchaikovsky”. Mas a maior surpresa foi, nos agradecimentos, a presença física do grande van Manem (já nos seus 83 anos e) considerado um dos grandes coreógrafos do século XX.
A fechar, num clima de verdadeira festa entre plateia e palco, não foi Bigonzetti, nem Kylian, nem Duato, nem Falco, mas sim Ohad Naharin com a obra “Minus 7” que, por sinal, foi dançada menos vezes que o magnífico “Através do olhos de Nana”, da responsabilidade de outro israelita, Itzik Galili e tantas como a movimentada “Sinfonia dos Salmos”, de Milko Sparemblek. Apesar dos dezanove bailarinos, algo frenéticos em cena, cantando e arremessando para o ar chapéus e as suas circunspectas peças de roupa negra sentados em outras tantas cadeiras, esta peça é um “crowd pleasing” cheia de truques e pequenos “faits divers”, hoje, dançada em “tudo” o que é companhia!
A diferença, seguramente, esteve em Miguel Ramalho que abriu o bailado com uma notável improvisação (em silêncio) à boca de cena, que quase conseguiu arrancar risos aos mortos! Dançando três dos quatro bailados do programa, com uma generosidade, versatilidade, talento e sentido de humor dignos de registo, ele foi, seguramente, a “confirmação” da noite, para não dizer a “estrela” despretensiosa desta homenagem. Para além, certamente, de toda a memória da muita saudade que ainda hoje se tem do BG. Ele seria, obviamente, um artista que qualquer dos seus seis directores não desdenharia contratar como solista. Também o dueto principal dançado por Leonor de Jesus e Lourenço Ferreira foi muito bem executado e, certamente, elevou a qualidade de uma obra bastante agitada mas que não prima pela profundidade de conteúdo. Um factor presente nos últimos anos do BG e, também da CNB, em que muitos dos coreógrafos exibidos nem parecem saber muito bem ao que estão a tentar dar vida! “Minus 7” convoca espectadores para acompanhar ao palco os bailarinos e promove um ambiente de marcada informalidade e descontracção que funciona sempre muito bem. De tal modo que, terminada a dança, foi sem surpresa que os jovens artistas da CNB “puxaram” para cena os antigas elementos do BG presentes nas poltronas, terminando a noite em grande animação e num já esperado convívio no proscénio.
Ainda que o exercício da memória na dança possa ser cruel e até injusto em muitas circunstâncias, as comparações entre homenageantes e homenageados deverão, para bem de todos, ser relativizadas num contexto tão especial como o referido. Mas foi pena, por exemplo, que nesta homenagem não se tivessem recordado alguns artistas proeminentes já desaparecidos, como foi Carlos Trincheiras, um criador que tão belas páginas deu à dança nacional. Bem como assinalar a lembrança de Isabel Santa Rosa, a bailarina portuguesa mais conhecida e acarinhada pelo público no BG (e em Portugal) em todo o século XX.
Depois de noites e noites de “arremedos” de bailados, de remakes grotescos de certos clássicos e de peças desadequadas para uma companhia que, acima de tudo, devia zelar pelo património terpsicoreano nacional – em vez de entrar por aventuras dispendiosas, estéreis e de qualidade duvidosa -, a CNB ofereceu aos espectadores um quarteto de obras consequentes e coreografadas com rigor, dançadas com energia e sentimento, mas sobretudo, estruturadas com verdadeira maestria e paixão. Já era tempo de ver bailarinos particularmente inspirados e um público completamente cativado.
Fotos: Bruno Simão