Por razões muito variadas a versão do bailado clássico Giselle que a sul-africana Dada Masilo e companhia trouxeram ao Centro Cultural de Belém (CCB) logo no início do mês de Fevereiro, não parece enfatizar um longo caminho de quase 180 anos.
A obra-prima do romantismo terpsicoreano estreou-se na Salle Le Peletier em Paris, em 1841, e nunca mais deixou de espantar e enternecer as plateias de todo o mundo. Tal facto deve-se, sobretudo, à humanidade da história que apela aos sentimentos humanos exibindo um enredo ingénuo mas muito bem gizado por Théophile Gautier. O mesmo juntou a uma trágica história de amor nos campos da Silésia (na actual Alemanha) um segundo acto em que a lenda das willis, umas figuras sobrenaturais que atacam os homens pela calada da noite, serve para continuar, num campo mais espiritual, todo um ritual de vingança e de perdão. Que, aliás, assenta magistralmente nos canones do romantismo europeu do século XIX.
Com o passar dos tempos muitas foram as adaptações e mudanças na obra, sendo que, Marius Petipa, na Rússia, lhe deu o formato – sobretudo no segundo acto – a que nos habituámos até aos dias de hoje. Contudo, nos finais de Janeiro de 2020, o Ballet Bolchoi, pela mão de Alexei Ratmansky, apresentou via televisão em directo para todo o mundo, uma nova/velha Giselle em que se recuperou, entre outras “subtilezas”, um final mais enternecedor que se perdera e fora mantido nos tempos do regime soviético.
Entre as versões clássicas famosas, conta-se a que o Dance Theatre of Harlem (de Nova Iorque) criou – com um elenco totalmente negro – intitulada Creole Giselle, em 1984, com coreografia de Frederick Franklyn em que a história se passa, não na Europa, mas no estado norte-americano da Luisiana.
Mais para os finais do século XX, inevitavelmente, assistiu-se a uma “reconversão” da história da camponesa Giselle para o idioma contemporâneo, tendo surgido muitas variantes, mais ou menos conseguidas. Sendo que a do sueco Mats Ek (de 1982, passada num manicómio) fez história.
É claro que, ao descartar-se as sapatilhas de pontas e “actualizar-se” a história, qualquer cunho romântico tem, repetidamente, caído logo por terra e, a maior parte das vezes, com ele, também a essência da própria peça.
Em 2016 o conhecido coreógrafo inglês Akram Khan – que há pouco tempo passou “a solo” pelo palco do CCB – criou uma Giselle contemporânea para o English National Ballet tendo, mesmo, descartado a partitura original de Adolph Adam. E o resultado (com música original de Vincenzo Lamagna) foi tão contemporâneo como controverso.
A proposta de Masilo, não sendo drástica na configuração das personagens centrais, mostra-se mais radical na segunda parte, em que o grupo de “espíritos” – que de espiritual pouco ou nada têm – é formado por homens e mulheres vestidos de vermelho e com uns folhos que parecem resquícios de tutus.
Percebe-se que esta Giselle (estreada em 2017 e com a própria Dada no papel titular) se move entre pessoas de camadas sociais diversas e que tem uma paixão por um homem que a troca por outra. Ela sente-se mais humilhada que traída e, sobretudo, dança com um ímpeto algo visceral. Mas, tirando o facto da sua tristeza e raiva a levarem a dançar desesperada e de peito nu, pouco mais se entende relativamente aos detalhes de tão pungente cena que se desenrola no seio de uma comunidade em África.
Curiosamente, onde a Giselle, coreografada por Perrot e Coralli, surge desgrenhada como uma mulher louca nos séculos passados caminhando através do mundo dos sãos, a de Dada surge de cabeça rapada, como se o drama se restringisse à sua expressão mais simples. Juntamente com o romantismo e sentimentalismo, que alimentam o bailado original, caíram detalhes de enorme importância para o entendimento da narrativa. Existe alguma gritaria e palavreado pouco perceptível, mas, quase nenhuma mímica. Já para não mencionar o facto da história se completar com um grupo de “espíritos ancestrais” vestidos de vermelho unissexo em volta de uma feiticeira de chicote em punho, cuja energia é o verdadeiro espelho da vingança.
Os treze bailarinos do grupo dançam com excelente ritmo, energia e determinação, em frente de algumas projecções que tentam criar um espaço e um tempo algo indefinidos.
A curiosa música de Phillip Miller, serve muito bem os propósitos de Masilo e, sendo muito diferente da de Adolphe Adam, em certas passagens parece citá-la e, mesmo, homenageá-la. Ela cria, na verdade, uma total simbiose com o movimento, revelando-se um factor de grande importância para a caraterização de um bailado com uma coreografia muito mais interessante que os seus aspectos narrativos.
Em resumo, o que faltou em detalhe nesta “Giselle negra”, a coreografia de Dada Masilo mostrou em convicção e atitude. Ainda que a construção e psicologia das várias personagens tivesse deixado muitas pontas soltas, e ao grupo rigor no detalhe, o maior ganho desta peça foi fazer uma espécie de homenagem à África negra, aos seus costumes e rituais ancestrais, ainda que alguns deles sejam inadmissíveis no século XXI.