Sinopse: O bailado é, de facto, uma arte que vive dos corpos que lhe dão corpo; da humanidade dos seres que materializam esta arte, que a transformam em experiência real, imediata, emotiva, inesquecível. Pois a partitura de um bailado não regista, como a partitura de uma sinfonia, algo a ser materializado por corpos humanos por intermédio de instrumentos mecânicos: a dança não é materializada por intermédio de nada que não seja directamente o próprio corpo humano. Se se pode dizer dos violinos que não há dois iguais, então dos corpos humanos se dirá o mesmo mais afirmativamente ainda: nenhum corpo é igual a outro. Cada corpo traz à dança que materializa a sua identidade e a sua verdade.
A aparição no mercado português de obras cuja temática é a dança pode assemelhar-se, temporalmente falando, às erupções vulcânicas nos Açores. E se essas obras versarem o trabalho de artistas nacionais, elas quase se transformam em… corvos brancos.
A chegada às livrarias de “Estética da Dança Clássica”, editada pela Cotovia, da autoria de Frederico Lourenço (ficcionista, ensaísta e tradutor) é, pois, um evento a celebrar. O autor nascido em 1963, especialista em literatura grega – traduziu em verso a Ilíada e a Odisseia homéricas (Prémio D. Diniz da Fundação Casa de Mateus e Grande Prémio de Tradução APT/PEN), publicou um volume de ensaios de temática helénica intitulado Grécia Revisitada e é também tradutor de uma amostra representativa dos diferentes géneros poéticos cultivados na Grécia antiga intitulada Poesia Grega de Álcman a Teócrito” – foi, durante muito tempo, professor de “estudos clássicos” tendo há uns anos enveredado pelo ensino da Dança.
Afirma ser “aparentado” com a arte de Terpsicore por laços familiares e o fascínio que ela, desde criança, lhe despertou está presente ao longo de toda a obra. Assume-se, no prefácio, como “baletólogo” (palavra que não se encontra em dicionários ao contrário de balletómano, vocábulo de origem anglo-saxónica há muito caído em desuso) e, curiosamente, afirma que a dança moderna está para Joyce como a clássica para Proust. Se tem como pintores favoritos da Vinci e Rembrandt, parece natural que Lourenço ache “tudo o que se pintou depois de Claude Lorrain, no século XVII, uma enormíssima porcaria”.
O autor estabelece como pressupostos e garantia de conhecer o mundo da dança, ter feito algumas aulas, ter acompanhado ao piano outras e ter escrito uns (poucos) artigos no defunto jornal “O Independente”.
Ao ler “Estética da Dança Clássica”, percebe-se que o escritor é um teórico muito bem informado mas que, provavelmente achará que tudo o que não meta sapatilhas de pontas, gibões e tutus, equilíbrios e rotações em cima do dedo grande do pé ou voltas duplas no ar, saindo de ou terminando com os pés em “quinta posição”… uma enormíssima inutilidade.
Partindo de conceitos estreitos e, mesmo, algo românticos verifica-se que, nesta obra, Frederico Lourenço, ainda que indirectamente e no sentido lato, toma a seu cargo a “defesa” da dança clássica. Inclusivamente da portuguesa, a qual tão maus resultados tem apresentado nos últimos anos.
Correndo o livro verifica-se que no primeiro capítulo, intitulado, “a arte da dança clássica” o autor tece, ao longo de 34 páginas, considerações várias sobre aquilo que é a sua visão da dança académico-clássica, autores e coreografias. Seguidamente disserta sobre os bailados “Giselle”, “O Lago dos Cisnes” (em que faz algumas afirmações de carácter histórico que recentes descobertas vieram, mesmo, a contradizer), “A Bela Adormecida”, “As Sílfides”. “Na Noite”, “A Árvore de Judas” e “As Aventuras de Alice no País das Maravilhas”, para além de “Apollo” e outras danças de George Balanchine e de várias “cenas” de bailados de Sir Frederick Ashton.
Na verdade, a chamada dança clássica (em Portugal) precisa muito mais de ser respeitada e consumida do que “defendida! Pois com a enorme concorrência de tantas outras formas que nos últimos tempos o Mundo trouxe até nós, é a sua intrínseca qualidade (a nível formal e estético) que certamente a protegerá muito mais que todos os livros do mundo. Independentemente do facto de ela poder ser reflectida e discutida e até divulgada em papel, como uma imagem sempre valerá mais que mil palavras, hoje, o vídeo (até mais que o cinema) tem sido o veículo privilegiado da transmissão dos melhores espectáculos de bailado clássico – protagonizados por grandes estrelas do firmamento balético – e também dos de dança contemporânea.
Na referida obra, cheia de virtuosismo informativo – um pouco à semelhança de muita da dança clássica que aposta objectivamente numa técnica estonteante –, o professor Lourenço faz uma viagem pela chamada “danse d’école”, qual D. Quixote em busca de moinhos que… apenas rodam quando há vento. Tal como alguns melómanos se vangloriam de conhecer de cor nas gravações a localização dos mais estonteantes sobreagudos de Maria Callas, Frederico Lourenço é copioso em termos técnicos e em citações de autores-especialistas consagrados. Veja-se o caso de Deborah Jowitt para Jerome Robbins e David Vaughan e Stephanie Jordan para Ashton. E, estranhamente, balança-se entre os vocábulos ballet e dança clássica, sem, no entanto se fixar na terminologia portuguesa.
Analisando em detalhe sete obras – e por alto, muitas mais – o escritor, em muitos aspectos, não vai mais além do que tudo o que sobre elas já escreveu nos seus países de origem. E, apesar de muita e bem seleccionada informação, as 200 páginas desta “estética da dança clássica” (o título é grafado deliberadamente com minúsculas) limita-se a uma ou outra pincelada na paisagem portuguesa, esgotando-se num exacerbado desejo de conferir identidade analítica e ideológica a um conjunto de objectos pontuais que, para além de serem estranhos à grande maioria dos leitores portugueses, vivem apenas em cena, em vídeo e na memória de quem intensamente vive de algum saudosismo e muita de magia.
É, pois, uma obra essencialmente apologética, escrita por alguém que desabridamente confessa que nunca chegou a bailarino, a pianista ou a coreógrafo – seguramente com enorme benefício para as letras – que trata das subtilezas e sortilégios do bailado clássico de um modo engagé e, até, militante. Porém, é pena que o deslumbramento traia o autor e muitas vezes se atravesse no seu caminho de um modo quase obsessivo.