Ao aproximar-se um marco importante, quatro décadas, na história da Companhia Nacional de Bailado (CNB) é curioso verificar que uma obra que está longe de ser uma das favoritas na galeria dos clássicos, “O Pássaro de Fogo”, acaba de ter a sua terceira versão. É caso para concluir que os sucessivos directores da CNB têm uma certa tendência para os animais de penas e a actual pelo abismo, gastando dinheiro à toa em produções espúrias e que vão do palco directamente para o reino do esquecimento. A confirmar tal afirmação é lícito perguntar por onde andará a “Perda Preciosa” e quem quererá voltar a ver o “Quebra-Nozes em duplicado”, ambos fruto de “delírios baléticos”, tão pouco convincentes como onerosos, de André Teodósio?
E o mais curioso é que nos tempos (de profunda crise) que correm, a CNB se dê ao luxo de fazer e refazer produções atrás de produções que não são nem clássicas nem contemporâneas – na verdadeira acepção dos dois vocábulos – e cujo objectivo parece ser, apenas, criar no espectador uma espécie de sensação de (falsa) novidade ou de uma vitalidade que a companhia, honestamente, há muito que não possui.
No caso vertente, esta gestão-fogo-de-artifício ainda é mais bizarra – e inaceitável – quando a CNB possui um dos mais belos guarda-roupas da história da dança portuguesa (daquele mesmo bailado) assinado pelo grande – melhor seria dizer enorme e falecido – Nuno Côrte-Real, em Abril de 88. Em Outubro de 2006, um então director turco adquiriu uma versão alemã, do falecido Uwe Scholz, apresentando-a num mesmo programa com a desenterrada “Sagração da Primavera”, de Nijinski. A nervosa personagem do pássaro foi, então, uma figura masculina, o conhecido bailarino cubano Carlos Acosta, que veio de Londres para espanejar em Lisboa no meio de monstros azuis contemplando um desfile de donzelas em camisa de dormir brancas, numa história imperceptível com um visual espacial-futurista aliada a uma coreografia arcaica e demasiado académica.
Mas (ou más) gestões financeiras à parte, a produção agora estreada no Teatro Camões foi assessorada por Carlos Pimenta, presumivelmente para dar um pouco mais de credibilidade dramatúrgica a uma história algo débil e por demais desinteressante em pleno século XXI. Com uma nova coreografia de Fernando Duarte, que é bem mais comedida em imagética que o pretensioso e caro “Lago dos Cisnes” – que já vai na CNB, muito provavelmente, na sua quinta ou sexta versão, coisa a que o rico e poderoso New York City Ballet não se atreveria – o qual inaugurou a onda das projecções luminosas sobre os corpos dançantes. Desta vez vai-se ainda mais longe e todos os muros da sala de espectáculos (à volta dos espectadores) são adornados com imagens corridas em movimento e texturas coloridas que caem e dão um óptimo enquadramento a uma aglutinação de contos populares eslavos que Mikhail Fokine coreografou em 1910, para os Ballets Russes de Serge de Diaghilev.
Se as paredes se assemelham aos shows que a autarquia lisboeta tem fornecido gratuitamente à “arraia miúda” no Terreio do Paço na época natalícia – o chamado video mapping pela empresa de Nuno Maya – já os rastos de luz serpenteando o fundo do palco e as tímidas folhas a cair em contra-luz evocando os outonos da nossa nostalgia, são a cara chapada das produções da Disney. Faltou apenas a frenética fada Sininho desenhado cornucópias no ecrã gigante para que os bailarinos em baixo, atrás duma exuberante orquestra, perdessem ainda mais a atenção dos espectadores.
A história de Ivan Tsarevich e o seu pássaro de plumagem côr de fogo, mais o medonho mágico Katschei e a bela Tzarevna, pouco mais é que um pretexto para ouvir a bela partitura de Stravisnki, tocada com garbo por nada menos que oitenta e tal elementos da Orquestra Sinfónica Portuguesa (os bailarinos não vão além dos trinta e poucos) controlada pelas mãos atentas da maestrina Joana Carneiro. Na verdade, a grande massa de músicos – em frente do palco e no mesmo nível dos bailarinos – e mais quatro grupos laterais, como um trio de arpas sobre o lado esquerdo do proscénio, criam uma sonoridade muita atractiva mas, em simultâneo, impõe uma posição algo dominante relativamente aos artistas da dança. Não é por acaso que os bons teatros possuem um fosso destinado à orquestra. Detalhe que Manuel Salgado (autor do projecto), sabe-se lá porquê, resolveu descartar… para mal dos bailarinos! Adiante.
Se sobre o desempenho musical não há muito mais a dizer – o espectador deve estar preparado para um alongamento da duração da obra que parece ter esticado relativamente aos “tempos” originais – sobre a coreografia há que assinalar um excelente diálogo entre Ivan (Carlos Pinillos) e o Pássaro (Filipa Castro) ao longo da primeira metade do bailado. Sem tecer grandes comentários – até porque a expectativa não era grande – é fácil perceber que os conjuntos pela sua forte componente simétrica e falta de inovação são o elo mais fraco deste espectáculo com figurinos “modernizados” (os rapazes dançam em fatos com transparências) assinados por José António Tenente. Tirando o fato da bailarina com o papel titular, que é colorido e parece complementar a dinâmica dos movimentos, os outros não são particularmente impositivos. A iluminação, creditada a Cristina Piedade, é pouco mais que “funcional” pois, no meio de tanta informação luminosa, fazer melhor parece mesmo impossível. Seria politicamente correcto afirmar que a segunda parte desce em interesse quando sobe em repetição, mas a verdade é que a partir do momento em que entram grupos de bailarinas (jovens de vestidinhos brancos que brincam com bolas) e “monstros” de macacões escuros encapuzados mostrando que não estão ali para brincadeiras, não há mais um laivo de surpresa! Quanto aos papéis de destaque, Carlos Pinillos convence no seu apego à ave e Filipa Castro, ainda mais, na sua sede de se libertar de um qualquer destino que parece dependente das mãos de Ivan. Yurina Miura é uma Tzarevna, delicada mas pouco expressiva enquanto Frederico Gameiro mostra uma presença forte e decidida no papel de Katschei.
Assim sendo, com mais ou menos fogo, os espectáculos da CNB mostram que mais vale um pássaro no chão que dois no ar! Ou será exactamente o contrário que se pode confirmar por estes dias nas fogosas paredes do Teatro Camões ?
Fotos: Bruno Simão e Daniel Rocha