Sem grande entusiasmo – e possivelmente também sem muita expectativa – Lisboa recebeu o Ballet de Marselha (BM) no Centro Cultural de Belém com um programa triplo constituído por obras de Fréderic Flamand, William Forsythe e Lucinda Childs.
A proposta marselhesa traduziu-se num conjunto de duas obras “de reportório” – das que costumam rodar por companhias de um certo nível técnico – e uma peça do arquitecto Flamand, director e coreógrafo residente do BM.
“A Inquietação de Narciso” é um bailado, como todos os de Flamand, conceptualmente falando, muito bem elaborado e inspirado na “mentira sistemática da imagem” e, também, na técnica do cinema e televisão. O trabalho, para 11 bailarinos, começa com jogos de solos e duetos com os artistas a espelhar as suas imagens projectadas em cinco painéis que cobrem o fundo do palco. A pouco e pouco, o movimento enfeuda-se menos à imagem e, depois de um estranho jogo “de futebol” com alguns rapazes a bater umas bolas coloridas, todos os bailarinos apresentam-se com capas de plástico sobre corpos aparentemente nus.
Embora o mais interessante na peça, com músicas de Gisnastera, Villa-Lobos, Revueltas e Vodenicharov, seja, mesmo, o habilidoso entrosamento entre as projecções e o movimento real, a concentração dos bailarinos é notável pois não há falhas na execução! Pena que o material coreográfico seja bastante lasso e, poucas vezes, verdadeiramente desafiante para o olho do espectador.
Já no que toca ao dueto “Herman Schmerman”, assinado por Forsythe, passa-se exactamente o contrário. Trata-se de uma pequena jóia de criatividade e de malabarismo técnico, um notável exercício de “estilo”, datado de 1992, com música de Thom Willems, criada no Ballet de Franqueforte, todo ele rápido, intrincado e virtuoso. Com as suas sainhas plissadas e os corpos bastante expostos, Béatrice Mille e Thibault Amanieu deram boa conta do recado, sem, no entanto, mostrarem uma exuberância física – quase tocando o inimaginável – a que, normalmente, esta peça se associa.
A finalizar a “soirée” um trabalho enérgico e fluído em três movimentos, de Lucinda Childs, para a “Chamber Synphonie” de John Adams. As danças da artista norte-americana, que têm vindo a tornar-se coreograficamente mais previsíveis e, quase sempre, frugais nunca fogem a uma relação de forte musicalidade que se traduz numa grande cumplicidade entre movimento e sonoridade.
Talvez por isso, “Tempo Vicino” – despido de cenografia – acabou por se revelar uma surpresa e a mais “contagiante” peça da noite. Uma iluminação escorreita mas muito efectiva, figurinos simples (em vários tons quentes de grená) coerentes com a estilizada e abstracta linha coreográfica, um decoro sempre presente – o contacto entre os bailarinos é mínimo e quase apenas as mãos se tocam fugazmente – um espaço que se conquista em cada sequência e uma pulsação segura e regular, são alguns dos dados em jogo e que contribuem para que a dança seja limpa e matemática sem, naturalmente, lugar para sentimentalismos ou deliberada sensualidade.