A “Sagração da Primavera” é, definitivamente, um bailado paradigmático e, por isso, o seu centenário não pode deixar de ser assinalado de um modo universal!
Provavelmente nenhum outro terá uma história tão rica, variada, excitante, controversa e, mesmo, escandalosa, dentro dos parâmetros da História da Dança.
Imagino que recuando cem anos relativamente à altura em que estou a escrever estas linhas – no dia 29 de Maio de 1913 – a azáfama de bailarinos, músicos e técnicos no Théâtre des Champs- Élysées, em Paris, era enorme. Bem como as dos que preparavam as suas roupas (e alguns objectos pouco apropriados para entrarem um teatro) para ir assistir a um evento que, de antemão, se sabia ter uma estranha coreografia, da responsabilidade de Vaslav Nijinski, e uma estrondosa música, assinada por Igor Stravinski.
Sabe-se que, a nível de pateada e gritaria, a noite da estreia, superou todas as expectativas de Serge de Diaguilev, o grande mentor da obra, pois grupos organizados já entraram no teatro determinados a deixar bem audível a sua reprovação.
Ficou para a História – através dos escritos da época que referem os detractores e apoiantes de uma evidente “proposta de ruptura” – a monumental barafunda na estreia parisiense de “A Sagração”. De um lado os que protestavam contra a “indigesta” música de Stravinski e que também berravam e assobiavam contra uns movimentos grosseiros, animalescos e viscerais que Nijinski tinha inventado. E do outro, os que gritavam bravos e aplaudiam sem reservas o génio de ambos e a surpresa que o evento encerrava. Os primeiros, certamente, faziam no final da soirée muito mais ruído dos que viram na obra tanto o engenho coreográfico de Nijinski como o musical de Stravisnki.
Ainda que a coreografia original se tivesse perdido – embora se dance em todo o mundo uma conhecida “reconstrução” do casal Milicent Hodson e Keneth Archer, feita com engenho e farrapos de memória de alguns dos artistas do elenco original, ao longo de uns trabalhosos 15 anos para o Joffery Ballet e apresentada em 1987 – o que não faltam são obras coreográficas que utilizam a avassaladora música de Stravisnki.
Poucas, diga-se em abono da verdade, inspiradas no enredo original da obra – um rito pagão russo – que ao longo destes cem anos foi perdendo actualidade e se afastando das novas gerações cujas motivações são cada vez mais diversas.
Não só a peça musical se autonomizou nas salas de concerto, como os muitos coreógrafos que nela pegaram utilizaram a música para abordar os mais diversos temas e as mais variadas estéticas coreográficas ao longo de um século.
Duas coisas relevantes não levantam grandes dúvidas: a antropófaga música nem sempre deixa grande margem para o movimento se revelar e brilhar e, no amplo universo dos coreógrafos, parece que um intenso desejo de coroar as suas carreiras com uma “Sagração”, ataca quase todos como se de uma doença se tratasse. Quantas vezes em busca da eterna Primavera escolhem uma das partituras mais dançadas em todo o mundo, quando o Outono, inexoravelmente, se aproxima…
A PRIMERA, AS OUTRAS E … A ELEITA
Da primeira Sagração já quase tudo foi dito e escrito. Apesar de não se conhecer em detalhe a sua coreografia pode-se ter uma ideia relativamente clara da obra vendo a meticulosa reconstrução proposta pelo casal Milicent Hodson- Kenneth Archer. Na opinião de muitos ela abriu as portas da modernidade. Música nada convencional e movimentos grotescos e pouco teatrais foram ao encontro dos que aspiravam uma verdadeira ruptura com a dança clássica. Cem anos após a sua estreia – em simultâneo a da deslumbrante e vigorosa partitura de Stravisnki e também do Teatro dos Campos Elísios – continua a ser uma obra admirável e muito admirada por público, artistas e académicos.
A segunda versão da obra deve-se a Leonide Massine. Quando em 1920 Diaguilev tentou repor a obra de Nikinski e Stravinski chegou à amarga conclusão que, apenas sete anos decorridos sobre a estreia, já ninguém se lembrava com exactidão da peça! Então, coreógrafo oficial dos Ballets Russes, Massine recorreu à mesma música e também aos trajes originais de Nicholas Roerich tendo refeito a obra cuja popularidade serviu de rastilho para as largas dezenas – há quem refira centenas – de versões que se lhe seguiriam. Em 1930, curiosamente, o papel da Eleita foi confiado por Massine à fundadora da Modern Dance, Martha Graham.
Em 1957 Mary Wigman – a grande dama do Expressionismo germânico – recorreu à partitura de Straviski para engendrar um ritual, escuro e pessimista como era seu apanágio, em que uma virgem é sacrificada a um deus pagão.
Provavelmente a versão mais estonteante, datada de 1959, deve-se ao coreógrafo francês Maurice Béjart, famoso pelo seu sentido de espectáculo e por colocar grandes massas humanas em cena movendo-se em uníssono. Essa é uma das mais reputadas e aplaudidas em todo o mundo, com uma enorme simplicidade de meios e portadora de um visível impulso sexual mostrando, no seu epílogo, um casal que é eleito para o sacrifício.
Quando em 62 Stravisnki completou oito décadas o Ballet Real de Inglaterra confiou ao seu coreógrafo mais representativo da altura, Kenneth MacMillan, uma versão (hoje quase esquecida) em tons de ocre situada no universo dos aborígenes australianos. A sua principal qualidade era um efeito visual que dava a entender ao espectador que a dança era vista de um plano superior. A obra foi resposta na Primavera de 2011, pela então directora do Royal, Monica Mason, que havia criado o papel da Eleita na estreia.
Três anos depois a estrela da dança russa, Vladimir Vasiliev (de colaboração com Natália Kasatkina), criou para o Bolchoi uma Sagração verdadeiramente espectacular mas que não deixou grande rasto.
Em 74 o norte-americano Glenn Tetley coreografou uma dança cuja originalidade residia no facto de “o eleito” ser um homem, para o Ballet de Estugarda, na Alemanha.
Actualmente contam-se versões verdadeiramente radicais. Algumas convertidas em solo da autoria de Tero Saarinen, Raimund Hoghe, Javier de Frutos, Molissa Fenley, Xavier Le Roy e outros.
Também existem outras mais ou menos perenes assinadas por coreógrafos famosos como Paul Taylor, Angelin Preljocaj, Mauricio Weinrot, John Neumeier, Karole Armitage e Jean-Claude Galotta.
Há, mesmo, uma de inspiração telúrica creditada a Heddy Maalem e criada em Lagos (na Nigéria), com um elenco totalmente negro. E uma outra, tocante e de uma humanidade rara dançada por não-bailarinos, com idades superiores a 60 anos, da autoria do coreógrafo franco-vietnamita Thierry N’Hiang.
Em 1990, Min Tanaka estreou o inconcebível, uma Sagração” na Ópera Comica, em Paris, com a colaboração artística de Richard Serra e música de Minoru Noguchi.
Finalmente a alemã Sasha Waltz foi a coreógrafa contratada pelo Teatro dos Campos Elísios para criar uma nova peça para festejar – justamente no local mais emblemático – os três centenários em simultâneo.
Porém, a versão eleita pela maioria dos conhecedores é, muito possivelmente, a de Pina Bausch criada para o seu Tanztheater Wuppertal, em 1975, e a única coreografia que a genial criadora vendeu e permitiu que se dançasse fora da sua própria companhia. O Ballet da Ópera de Paris remontou-a no Palais Garnier e conseguiu mais um grande triunfo para o seu reportório.
Pode-se dizer que é a mais sensual – e, por vezes, também de uma sexualidade ímpar – devido à deliberada “vaginização” da obra.
AS PORTUGUESAS
Em Portugal esta obra viu muito poucas vezes as luzes da ribalta. O Ballet Gulbenkian, entre 1961 e 2005, dançou duas Sagrações, a de Joseph Russillo, em 1980, e a bela criação de Marie Chouinard, em 2003.
O grande coreógrafo Carlos Trincheiras coreografou a primeira Sagração “portuguesa” em 1982, curiosamente, no Brasil, para o Ballet do Teatro Guaíra (Curitiba) de que era director artístico. A peça foi reposta na Companhia Nacional de Bailado dois anos depois.
Só muitos meses depois do centenário dos Ballets Russes a CNB faz uma tímida comemoração da efeméride tendo o catalão Caetano de Soto coreografado, a convite de Vasco Wellenkamp, uma “Sagração” que não fez história…
Olga Roriz contribuiria com a quarta versão para a CNB, em 2013, remontada a partir da peça que a sua própria companhia estreou em 2012. Na sua visão a coreógrafa, curiosamente, não faz a apologia do sacrifício – como na versão original e em muitas outras – mas sim do suicídio de um elemento feminino do grupo.
Mas a criadora portuguesa não se ficou por aí e converteu-a, posteriormente, num solo para si criado expressamente para o centenário da obra em Maio de 2113.
António Laginha
Nota do autor
Tive o privilégio de dançar a “A Sagração da Primavera” na CNB na versão de Carlos Trincheiras e, desde, então, fiquei a conhecer a obra em profundidade nos seus variados aspectos musicais.
Acredito, mesmo, que muitos podem escrever sobre esta fascinante panóplia de versões e de ideias encastradas na partitura de Straviski. Porém, só quem teve a sorte e o fascínio de a sentir – e de se sentir – em cena compreenderá em profundidade toda a magia e o sortilégio que ela encerra. Uma obra-prima é sempre uma obra que vai para além da poesia do real e do imaginário!
AL