Era muito aguardada em Lisboa a obra de Vera Mantero que se estreou no estrangeiro (Alemanha) o ano passado e já circulou pelo país antes de se mostrar na capital portuguesa, na Culturgest, no epílogo do Festival Alkantara.
O título, “ Vamos Sentir a Falta de Tudo Aquilo de que não Precisamos” é curioso (como, geralmente, o são todas as propostas da coreógrafa portuguesa mais apreciada no estrangeiro) e, indubitavelmente, apela à imaginação e à reflexão .
Como é do conhecimento de muitos, Vera é uma excelente bailarina (que exibe uma estimulante qualidade de movimento quando dança) uma criadora muito imaginativa – sobretudo nas peças em que também se apresenta como intérprete – e (quase) sempre muito provocadora. O seu trabalho teatral é frequentemente coroado de elogios, embora quando decide fazer umas pausas e se dedicar a recitais de canto, a sua voz tenha pouca profundidade e os seus fados e canções brasileiras se revelem algo insonsos.
“Vamos Sentir a Falta de Tudo Aquilo de que não Precisamos” é uma espécie de manifesto em que Mantero faz uma crítica pouco velada a alguns aspectos da vida contemporânea questionando mentalidades e pondo em causa princípios e valores da nossa sociedade.
Formalmente é um trabalho que se apresenta com uma simplicidade desarmante, com uma dramaturgia sólida e que termina deixando no palco uma paisagem que quase lembra despojos de “guerra”. Repetidamente os quatro intérpretes vão entrando e saindo de cena com cabeças de manequim vazias nas mãos, de onde tiram centenas de pequenos objectos (irrelevantes) que posteriormente atiram para o solo com mais ou menos espalhafato. Como se fala muito e não se dança rigorosamente nada, a última coisa que se pode dizer desta obra é o que apareceu no título de um artigo de um quotidiano nacional: Dançar este tempo de ganância e avidez!
“Dança de pensamento”, como também o mesmo jornal assinala, sim. E de humor também.
Não há um único passo de “dança” reconhecível nesta obra nem nas mais recentes de Mantero. Há, isso sim, movimento pedestre – praticamente todas as intervenções e sucessivos “episódios performativos” se resumem a caminhar para dentro e fora do palco dominado por pesadas e simbólicas cortinas de veludo cor de vinho colocadas à volta do proscénio.
Apostando deliberadamente no conteúdo, esta peça de assumida “não-dança” levanta curiosos problemas relativamente ao mundo que nos rodeia. Mas o facto de praticamente não ter movimento coreografado, apenas se detecta um ciclo de circulação dos quatro “performers” (Vera, Marcela Levi, Miguel Pereira e Christopher Ives) que, melhor ou pior vão debitando textos – mais ou menos interessantes e mais ou menos inteligíveis -, chorando e pintando a cara com maquilhagem, faz com que, a determinada altura, se instale uma certa sensação de monotonia num trabalho nem sempre apelativo a determinados sentidos.
É acessível? Talvez, se se ler na superfície do conceito exposto. É um trabalho satisfatório? Será para quem gosta de decifrar problemas sem resolução e de ver muita tralha (na margem do lixo) espalhada pelo solo e gente que em vez de comunicar com o corpo, fala. É um trabalho interventivo? É-o certamente. Mas também poderá ser visto com um certo cunho de pretensão ao esperar que a metáfora e o simbolismo mude o mundo e possa emocionar aqueles que pretendem da dança mais do que simples manifestos e receitas. Muitos há que, apesar das muitas propostas em contrário, ainda conservam uma saudável fome de movimento!