Pairam silêncios de morte
Como se fosse noite… mas é dia
Não é destino, nem mágoa, não é sorte
Será apenas desnorte? Saudade ou melancolia?
Num mundo dançante em que o enigmático silêncio das mãos se cruzava (nem sempre harmoniosamente) com a tessitura saltitante dos pés, eis senão quando – quase de repente ou não mais que de repente – surge algo que nos abalou todos os alicerces. Algo que nos fez parar, cismar, questionar e, em muitos casos, obrigar a agir em vez de retrair. Para o nosso bem e o dos nossos semelhantes. Até para o de animais e plantas, mares e florestas. Pois não só está em jogo a vida dos seres humanos como a dos muitos bichos que nos cercam e da própria Natureza.
Uma pandemia é coisa que, para sorte nossa, tem vindo (mais ou menos) de cem em cem anos. Embora, destra vez, mais preparados que nos tempos da pneumómica ou gripe espanhola (1918) esta calamidade , ainda assim, caiu em cima de um planeta informado e “global”… como uma bomba. Apresentando-se como um problema novo para um mundo velho. E, de repente, tudo se transforma e muita coisa se perde…. ao contrário do que, no passado, preconizou Lavoisier.
Não temos dúvidas que com o Sars-Cov2 à solta ele colocou-nos perante uma série de factos que não tínhamos consciência ou de que nos estávamos a esquecer. Ou, deliberadamente, a ignorar. O certo é que, repente, fomos quase todos obrigados a mudar as nossas rotinas – provocando toda a espécie de danos que vão dos económicos aos psicológicos, passando por muitos outros – e tudo se tornou tão vulnerável e tão frágil. Com o espectro da morte a voar cada vez mais baixo e a ameaçarmo-nos e aos nossos entes queridos, o abraço tornou-se um perigo e o aperto de mão uma inusitada proibição. E num mundo que queremos democrático e civilizado, em muito casos, o pior do pior (sobretudo na política mundial), parece ter vindo ao de cima.
O certo é que temos um vírus democrático – mais um – que ataca qualquer ser humano independentemente da cor da pele ou da condição social, não fazendo bem e não olhando a quem.
Se já havia problemas muito graves nesta sociedade, dita globalizada na informação e desinformada na globalização, esta pandemia pôs em cima da mesa (no altar fervente do quotidiano) uma série de problemas a que o cidadão comum não estava, de todo, habituado. Desde logo o confinamento compulsivo de pessoas que se supunham livres e começaram a ter que andar de máscara e de mãos impecavelmente desinfectadas.
Outra particularidade do Sars-Cov2 é que se é democrático no alcance já nas consequências não se pode afirmar o mesmo, porque ele se repercute de modos muito diferentes na vida das pessoas. Como é lógico, é muito mais fácil estrar-se comodamente em confinamento do que em condições precárias. E, por associação de ideias, isolados em teletrabalho do que a expor-nos aos perigos das ruas e dos transportes públicos.
Este é, pois, um problema que exige aprofundada reflexão, pois a crise decorrente da perda de milhões de empregos de um modo repentino atingiu certas profissões de um modo avassalador. Muitas das quais, não parecendo, eram bastante mais precárias do que, eventualmente, se poderia imaginar. É o caso dos artistas ligados às chamadas artes teatrais, artes de palco ou artes performativas.
Curiosamente, numa época de “mil perigos” em que até a respiração nos faz temer, começou-se a falar e a dar uma importância quase vital às mãos. Ora as mãos que são, justamente, um dos principais instrumentos de trabalho dos bailarinos e dos coreógrafos. Duas profissões focadas no corpo, mais no todo do que nas suas partes. Mas, na verdade, as mãos têm uma importância vital naqueles dois tipos de artistas que, praticamente, ficaram sem trabalho. E por tempo indeterminado.
Ora o ofício de bailarino – que se afasta do de músico, no sentido em que este pode adquirir o seu instrumento de trabalho pronto e afinado numa qualquer loja, já o artista da dança tem que passar pela demorada e penosa tarefa de, contra ventos e marés, preparar o seu instrumento antes de o exibir em cena – parece ser ainda mais vulnerável que o dos outros artistas. Melhor sorte têm os cantores que, facilmente, transportam consigo o seu ganha-pão bem guardado no seu peito e garganta. Podendo, em qualquer hora e em qualquer lugar, soltar umas boas notas, por vezes, sem exaustiva ou sofisticada preparação. Por tal, em tempos de guerra, os seus cantos podem incitar à vitória ou aliviar na derrota. E quantos músicos, no passado, incorporaram exércitos rufando ruidosamente tambores em sangrentas batalhas e, ainda hoje, marcham garbosos nas paradas militares. Hoje, muitos cantores valeram-se da Internet para mostrar a sua arte e alguns músicos até se juntaram em orquestras em formato “digital”!
Numa equação muito particular, em que uma das incógnitas se chama COVID-19, onde se colocam, pois, os artistas da dança? Provavelmente no lado mais incómodo desse penoso clavário.
Em tempos de pandemia, temos visto cantar à janela e ouvido música nos balcões dos prédios, mas os bailarinos, afastados do seu habitat natural que são os estúdios de dança, onde se apresentam? Ainda que lutem por se manter em forma, a sua arte precisa de espaço e, quase sempre, de um estado de espírito de grupo. E não são os bailarinos, indubitavelmente, os que no seu trabalho mantêm um estreito e necessário contacto físico? Este é, pois, um tempo de desafios, dir-se-ia mesmo, gigantes, para todos os que vêem os seus afinados e milimétricos movimentos, lentamente, abandonarem os seus corpos e as companhias (independentes) completamente estraçalhadas. Este é um verdadeiro teste para a perseverança e a força de vontade, tão comum na maioria dos bailarinos, e para a resiliência dos professores e coreógrafos. E de bom senso e um teste à inteligência para os directores das grandes companhias (e pequenos grupos) e, mesmo, de políticos que têm na mãos a vida de milhares e milhares de pessoas ligadas à vasta área da da Cultura.
Se algumas companhias como o New York City Ballet – com mais de uma centena de bailarinos assalariados e outros tantos técnicos que actuam na rectaguarda e os muitos músicos que os acompanham em cena – pode, serenamente, anunciar um ano de pausa, qual será o futuro das pequenas companhias e grupos, com as suas actividades repentinamente, reduzidas a zero?
DANÇAR EM TEMPOS DE (QUE) GUERRA ?
Seguindo um pouco a tendência europeia – não parar tudo enquanto não há vacina eficaz – a direcção da Companhia Nacional de Bailado (CNB) e do OPART / Teatro Nacional de São Carlos, de Lisboa, tem ziguezagueado. Embora, para bem dos seu elenco, não tenha havido quaisquer despedimentos. Por sinal – coisa curiosa – até houve promoções. Quando, no ano passado, a CNB apresentou uma das mais descabeladas programações de há memória naquele grupo que já cumpriu quatro décadas, anunciando um programa, para Março de 2020, com o premonitório subtítulo Dançar em tempo de guerra, nada se adivinhava do que viria a ser o ano 2020, pós Março. Constituído por duas obras que em nada reflectem a nossa dança – Der Grüne Tisch (A mesa verde),de Kurt Jooss e Chronicle, de Martha Graham – acabou por ser dançado apenas uma vez no passado dia 11 de Março, no Teatro Camões. Posteriormente os espectáculos foram cancelados e, perante uma visível ausência de liderança e organização, primeiro os bailarinos foram mandados para casa, entregues a si mesmos, sem qualquer planeamento de trabalho e, depois, tem se vindo a apresentar, pontualmente, algum trabalho em condições de enorme perigosidade.
As pequenas companhias – ditas independentes – ou fecharam as portas (e os bailarinos, professores e coreógrafos foram trabalhar em actividades que lhe garantissem o ganha-pão) ou viram o seu trabalho muitíssimo reduzido.
Se o presente é o que é, o futuro – ainda que com vacinas e distanciamento físico – não se vislumbra nada risonho. Mas isso tem importado pouco aos decisores políticos portugueses que, sem grande pudor, têm jogado com a vida de muitas dezenas de artistas – e de técnicos – e vindo a desprestigiar a CNB, uma “companhia de bandeira” que merecia melhor sorte. Mas a TAP não teve melhor sorte e continua no chão ou a “voar” muito rasteiro.
“Dançar em tempo de guerra” é, pois, um estado involuntário para os artistas. Mas será ele necessário em Portugal? Representado por uma CNB cada vez mais à deriva num mundo em que, como afirmou Edgar Morin, parece “estarmos a caminhar como sonâmbulos em direcção à catástrofe”.
António Laginha