A Companhia Nacional de Bailado (CNB), em quase quatro décadas de existência, já mostrou aos portugueses quatro versões do “Lago dos Cisnes” (respectivamente de Brydon Page – segundo acto – Armando Jorge, Mehmet Balkan e Fernando Duarte); três do “Quebra-nozes” (Armando Jorge, Mehmet Balkan e Fernando Duarte) e duas do “Romeu e Julieta”, de George Skibine /Tony Hulbert e de John Cranko. Esta última, juntamente com a de Sir Kenneth MacMillan, é uma das mais conhecidas e celebradas em todo o Mundo, na tradição do bailado inglês.
Numa insensata e despesista acumulação de repertório, mais um “Romeu” não seria coisa imprevisível na cabeça da directora da CNB, Luisa Taveira. Diz-se que três é a conta que Deus fez, todavia a mão “divina” há muito que abandonou a CNB. E, para não variar, a proposta agora apresentada no Teatro Camões é, de longe, a menos interessante de todas elas. Sombria – para não dizer a despenhar-se no negro – sem cambiantes (descartar o lado mais sentimental e “mediterrânico” da texto de Shakespeare pode ser “modernaço” mas mutila irremediavelmente o espírito da monumental obra) e, sobretudo, sem uma escrita coreográfica com alguma criatividade e espessura dramática, que remeteu o desempenho dos bailarinos para um limbo insustentável e uma prestação que poderia vir de um qualquer grupo semi-profissional.
Desde logo, Rui Horta, o coreógrafo contratado para essa tarefa, para suportar a sua visão da famosa obra do bardo de Stratford-upon-Avon, afirmou publicamente que a Humanidade tem andado enganada nos últimos 400 anos! E que a sua versão era muito mais virada para a violência e morte do que para o amor, descartando toda a aura de romantismo que costuma acompanhar o título. A verdade é que descarnou até ao osso tendo, mesmo, recusado as costumeiras partituras de Prokofiev, Berlioz e Tchaikovsky – normalmente utilizadas nas versões dançadas no “drama de Verona” – e encomendado uma composição musical de raiz a Bruno Pernadas. Tal foi, seguramente, um dos factores mais positivos de toda esta empresa, uma vez que, assim, pelo menos se aumentou o património musical português contemporâneo.
Consultando o programa que acompanha o espectáculo – diligência que não deve ser necessária já que é regra básica para qualquer acto performativo que ele fale por si próprio – percebe–se bem como o autor articula o seu pensamento coreográfico e gere uma espécie de sub-história, em nenhures. Provavelmente na esperança que a ausência de narrativa convencesse os espectadores da bondade da sua coreografia. Mais se afirma que a obra aposta em premissas que raramente se associam a este clássico, aflorando, aqui e além, alguma poética que, em alguns momentos, se consegue sobrepor a um certo deserto emocional que domina o desempenho de um grupo de 18 bailarinos.
Na verdade este “Romeu e Julieta” não traz absolutamente nada de novo em termos interpretativos já que apresenta dois actores que debitam alguns excertos da peça (Carla Galvão e Pedro Gil), bailarinos que dançam um vocabulário bastante básico, assinale-se, e uma meia dúzia de músicos que tocam, no seu canto, empoleirados num andaime. O todo, completamente a preto e branco e sem qualquer cenografia, afigura–se como uma espécie de soma de partes, algo esdrúxula e pouco exaltante, carecendo de uma escrita e, acima de tudo, de uma direcção que faça sonhar, que transfigure e que, em última análise, chegue às entranhas.
Ainda com o público a entrar na sala um homem totalmente vestido de preto (como, aliás, todos os artistas em cena que se apresentam de calças e camisa) começa a martelar violentamente uma parede do palco, dando o mote para o espectáculo. De seguida, dois grupos de homens e mulheres posicionam-se lado a lado e ouvem-se as primeiras linhas de texto de Shakespeare. A intérprete de Julieta, contudo, parece mais segura e convincente que o seu “parceiro” no débito de palavras incisivas e escolhidas a dedo, sejam as dos trágicos “amantes” ou as dos seus criados. Inclusivamente quando as duas figuras que, fisicamente, se mantêm sempre distantes (durante cerca de hora e meia que dura o espectáculo), se dirigem um ao outro na famosa cena do balcão. Habilmente enquadrada pelos músicos que estão num plano superior aos artistas bailarinos, a actriz, com a colaboração do seu colega vai gerindo um espaço mutante – em que cortinas brancas e pretas deslizam à volta do palco – e um tempo que parece tão aleatório como as próprias sequências dramatúrgicas.
Entre os bailarinos, uma espécie de massa anónima que nunca chega a ter o domínio da cena nem da suposta acumulação de situações, nada parece sustentar qualquer esboço de personagem teatral. Estes agrupam–se em pares e abraçam-se ou deitam–se no solo frente-a-frente, marcham batendo violentamente com os pés no palco ou com os punhos no peito em uníssono, fazem caretas e dão urros, e pouco mais. Parecem todos abandonados a uma série rotineira de movimentos inexpressivos e, por vezes, algo entediantes que nunca parecem criar um verdadeiro sentimento de pertença na parte do público. Que, não por acaso, aplaudiu com generalizada frieza os artistas no epílogo da peça, na noite de estreia.
A música de Pernadas é, contudo, uma boa surpresa – ao contrário da “decoração” de cena, roupas e iluminação – porém, sem nunca sair de um certo registo que parece o imposto pela restrita leitura coreográfica do drama shakespeariano feita por Horta.
Ainda que a sua proposta, em que “thanatos” deliberadamente eclipsa “eros”, seja incisiva e assumida, a verdade é que Franco Zeffirelli, saindo dos cânones tradicionais do romantismo literário, nos deu uma leitura (cinematográfica) infinitamente mais interessante, cativante e criativa do que a maioria dos coreógrafos ditos iconoclastas. E mesmo a lembrança de Maurice Béjart, que há mais de quatro décadas trouxe a Portugal uma versão que fez história, provavelmente fará com que este “Romeu” venha a ter o mesmo destino da esmagadora maioria das infelizes encomendas de Luisa Taveira.
Infelizmente, o velho ditado “à terceira é de vez”, não se cumpriu na estreia desta obra tão representativa no imaginário universal no (pobre) Dia Mundial da Dança de 2016 !
Assim sendo, o trabalho em causa poderia, mesmo, intitular-se “Amadeu e Antonieta” já que o génio do Bardo se perdeu nas brumas. E Rui Horta, seguramente, não encontrou o caminho certo para deixar marca num repertório com a dignidade que a CNB deve ao País que a suporta e a alimenta. Ele próprio afirmou publicamente que o seu “Romeu e Julieta” tinha “tudo para correr mal”.
E não é que correu ?